Aqui houve faísca
Perto das dez da noite partimos, em direção aos bares e restaurantes da
zona histórica que haviam sido selecionados. Íamos cheios de entusiasmo, com a
adrenalina a injetar-nos a energia de que todos precisávamos, depois de um dia
de trabalho intenso. A baixa de última hora da mentora deste projeto, posto que
lamentássemos o que a motivou, não logrou refrear-nos o entusiasmo, já que foi
compensada por um amigo e companheiro amante do teatro, tal como todos nós.
Seguimos, subindo a rua, o ardina lançando o seu pregão, o instrumento musical
acariciado pelos lábios da L., que acorda em mim reminiscências da minha
infância: o homem dos sete ofícios a trazer com ele as chuvas de outono, ao
mesmo tempo que calcorreava as ruas da terra onde nasci, e o som da música a fazer surgir das portas mulheres com os seus guarda-chuvas a precisarem de um
fecho ou uma vareta, facas, tesouras, foices e gadanhas a suplicarem por um
novo fio, pratos e travessas partidos a aguardarem o abraço que as voltaria a
integrar ao uso, farrapos vendidos ao quilo, panelas e tachos a pedirem um
pingo de solda que as devolvesse às tarefas para que haviam sido concebidas…
Logo de seguida, a canção do “ Amor de Perdição”, colhida ao vivo da boca da minha mãe, ainda de boa memória, a cortar a noite calma e fria, nas nossas vozes não
muito afinadas. Transeuntes ocasionais mimavam-nos com sorrisos, olhares
curiosos e divertidos. Ostentávamos orgulhosamente os bonecos que nós próprias
confecionáramos, e assumimos as personagens de saltimbancos e titereiros.
Entrámos no primeiro bar. Receção calorosa, atenta. Correspondemos.
O 2º local que nos haviam proposto, estava, àquela hora, deserto.
Foi-nos sugerida a visita a um outro. Bem sabíamos ser este um restaurante não
acessível a todas as bolsas. Enfim…talvez numa ocasião especial. Mas íamos ali
para fazer o nosso trabalho.
Instalámo-nos nas nossas posições e
demos início à função. Apenas três mesas ocupadas, uma das quais central,
grande, redonda. As conversas que detinham, ficaram, por momentos, suspensas. Mas
também os seus ocupantes pareceram terem ficado, também, suspensos de viver,
sentir, ouvir, rir, olhar. De facto, os ocupantes da mesa que estavam de
costas, de costas ficaram, sem se virarem para os atores que tomavam como suas
as peripécias das personagens do “ Amor de Perdição”. Saímos, algo desiludidos
com a frieza e indiferença. Quando se põe amor, entusiasmo, energia naquilo que
se faz, espera-se, ao menos, um olhar.
Esta indiferença consolidou em nós aquilo que já várias vezes havíamos
experienciado: as pérolas são mal empregadas é naqueles que consideram que o
seu estatuto lhes permite olhar os outros com sobranceria, nos que passam pela
vida ostentando a máscara que nunca abandonam, que se não permitem sonhar, rir,
talvez receando dar razão ao aforismo “ muito riso pouco siso”, sem se darem
conta de que o rei vai nu…
Mas foi-nos pedido que voltássemos no dia seguinte, a uma hora em que
apanharíamos os clientes a jantar. Voltámos. Desta vez, sala cheia. Em algumas
mesas a conversa continuou, como se nada estivesse a acontecer, o que obrigou
os atores a um esforço suplementar para se fazerem ouvir.
Porém, nessa chuvosa e nebulosa ilha de indiferentes, brilhou um
arco-íris: uma mesa onde uma criança acompanhada pelos avós carinhosos nos
seguia atenta e embevecida e cujo avô nos acompanhou à porta no final, querendo
saber mais sobre nós.
Seguimos para os outros dois espaços:
ambos cheios como um ovo, com clientes de diversos níveis etários. E aconteceu
a partilha: nós atuámos com a nossa entrega e energia e o público correspondeu
com a sua escuta ativa, o seu calor, canto, riso, participação, palmas. Aqui
houve faísca.