"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Nem olhaste para trás...

Esperas-me à entrada da nossa casa
A casa que ambos construímos com alma
A alma da nossa casa habitada em nós
Os nós com que prendemos os sonhos
Que esvoaçavam iluminados pela lua
A mesma lua que desenha as tuas coxas altas
Na camisa de noite transparente
Transparentes os teus olhos
Enquanto no coração se atropelam
Espessos e profundos presságios
Fitas a noite incendiada de desejos
Desejos flamejantes em tropel
Na noite solitária.
Ainda virás à porta da nossa casa
Sete noites a fio
Uma noite a seguir a outra noite
Sondando a escuridão
Os teus pés descalços caminham
Sobre um tapete de vidros
Mas tu nem notaste
Fizeste a mala e partiste nessa noite
A nossa casa ruiu atrás de ti

Nem olhaste para trás.

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Aqui houve faísca

Aqui houve faísca

      Perto das dez da noite partimos, em direção aos bares e restaurantes da zona histórica que haviam sido selecionados. Íamos cheios de entusiasmo, com a adrenalina a injetar-nos a energia de que todos precisávamos, depois de um dia de trabalho intenso. A baixa de última hora da mentora deste projeto, posto que lamentássemos o que a motivou, não logrou refrear-nos o entusiasmo, já que foi compensada por um amigo e companheiro amante do teatro, tal como todos nós. Seguimos, subindo a rua, o ardina lançando o seu pregão, o instrumento musical acariciado pelos lábios da L., que acorda em mim reminiscências da minha infância: o homem dos sete ofícios a trazer com ele as chuvas de outono, ao mesmo tempo que calcorreava as ruas da terra onde nasci, e o som da música a fazer surgir das portas mulheres com os seus guarda-chuvas a precisarem de um fecho ou uma vareta, facas, tesouras, foices e gadanhas a suplicarem por um novo fio, pratos e travessas partidos a aguardarem o abraço que as voltaria a integrar ao uso, farrapos vendidos ao quilo, panelas e tachos a pedirem um pingo de solda que as devolvesse às tarefas para que haviam sido concebidas…
      Logo de seguida, a canção do “ Amor de Perdição”, colhida ao vivo da boca da minha mãe,  ainda  de boa memória, a cortar a noite calma e fria, nas nossas vozes não muito afinadas. Transeuntes ocasionais mimavam-nos com sorrisos, olhares curiosos e divertidos. Ostentávamos orgulhosamente os bonecos que nós próprias confecionáramos, e assumimos as personagens de saltimbancos e titereiros.
     Entrámos no primeiro bar. Receção calorosa, atenta. Correspondemos.
     O 2º local que nos haviam proposto, estava, àquela hora, deserto. Foi-nos sugerida a visita a um outro. Bem sabíamos ser este um restaurante não acessível a todas as bolsas. Enfim…talvez numa ocasião especial. Mas íamos ali para fazer o nosso trabalho.
Instalámo-nos nas nossas posições e demos início à função. Apenas três mesas ocupadas, uma das quais central, grande, redonda. As conversas que detinham, ficaram, por momentos, suspensas. Mas também os seus ocupantes pareceram terem ficado, também, suspensos de viver, sentir, ouvir, rir, olhar. De facto, os ocupantes da mesa que estavam de costas, de costas ficaram, sem se virarem para os atores que tomavam como suas as peripécias das personagens do “ Amor de Perdição”. Saímos, algo desiludidos com a frieza e indiferença. Quando se põe amor, entusiasmo, energia naquilo que se faz, espera-se, ao menos, um olhar.
      Esta indiferença consolidou em nós aquilo que já várias vezes havíamos experienciado: as pérolas são mal empregadas é naqueles que consideram que o seu estatuto lhes permite olhar os outros com sobranceria, nos que passam pela vida ostentando a máscara que nunca abandonam, que se não permitem sonhar, rir, talvez receando dar razão ao aforismo “ muito riso pouco siso”, sem se darem conta de que o rei vai nu…
      Mas foi-nos pedido que voltássemos no dia seguinte, a uma hora em que apanharíamos os clientes a jantar. Voltámos. Desta vez, sala cheia. Em algumas mesas a conversa continuou, como se nada estivesse a acontecer, o que obrigou os atores a um esforço suplementar para se fazerem ouvir.
      Porém, nessa chuvosa e nebulosa ilha de indiferentes, brilhou um arco-íris: uma mesa onde uma criança acompanhada pelos avós carinhosos nos seguia atenta e embevecida e cujo avô nos acompanhou à porta no final, querendo saber mais sobre nós.
Seguimos para os outros dois espaços: ambos cheios como um ovo, com clientes de diversos níveis etários. E aconteceu a partilha: nós atuámos com a nossa entrega e energia e o público correspondeu com a sua escuta ativa, o seu calor, canto, riso, participação, palmas. Aqui houve faísca.

                     

quinta-feira, 27 de abril de 2017

Meu amor

Sabe, menina, a mim o meu homem nunca me chamou “meu amor”! Não era dado a essas coisas. Ia direito ao assunto, e… pronto!
Ao princípio ainda me queixei…à minha mãe, e ela apressou-se a dizer que ele estava no seu direito, as mulheres tinham que aguentar e sofrer, que era assim desde o princípio do mundo e assim havia de ser …
Ele era um pouco bruto, tinha que ser quando e como ele queria, não sei se me entende, e depois virava-se para o outro lado, e roncava…Eu ficava ali, no escuro, a tentar perceber como é que as raparigas tanto sonhavam com o casamento, no meu tempo sonhavam, menina, acredite, e depois era aquela coisa tão horrível!...
Mas o mudo, sim! Ai, menina, o mudo! Se não fosse ele, nunca eu tinha percebido como “aquilo” afinal podia ser tão bom…Não, não me arrependo!...quer dizer, em tempos, assim uns remorsos, por causa do mudo…Morreu tão cedo…Pobre homem! Tão terno, tão carinhoso…tão…ai! Aquele olhar dele, manso e sereno como as searas, a chamar-me de “ meu amor”!...Dava-me um estremecimento cá por dentro…
Foi por isso que o meu homem…Ficou cego, quando soube. Já andava desconfiado…e eu não tinha como negar…Ele tinha-me por inteiro…O meu homem tinha o meu corpo, tinha direito a ele, mas o meu coração…ai, esse pertencia ao mudo…
Ainda lhe procurei porque me não tinha matado a mim…O mudo não fazia mal a uma mosca…Sabe o que me respondeu? Que eu era precisa para cuidar dos filhos e das terras…
A quem, ao meu homem? Não, menina, nunca o odiei por isso…Ao princípio sentia assim umas ondas de raiva, mas depois passou-me!...E ele não era mau de todo! Era trabalhador, meu amigo e dos filhos, mas não tinha jeito para meiguices, pronto, era tudo à bruta! E eu até lhe queria bem…Não foi só ele que se castigou lá na prisão, olhe que eu também sofri! E tive que criar os filhos sozinha, a minha São ainda não tinha três anos…
Mas o meu mais velho, uma vez, entrou-me em casa, devia ter aí…uns catorze anos, se tanto… olhou para mim cheio de ódio e gritou-me: “ Afinal o pai está na choldra porque vossemecê lhe pôs os chavelhos! “ Oh! Menina, agarrei no cavalo-marinho, e malhei, malhei, malhei, até o diabo dizer “ bonda!”Atão aquele manganão estava a viver debaixo das minhas telhas, e assim me faltava ao respeito? Aquilo era entre mim e o pai dele! E o pai estava na choldra, porque tinha assassinado um homem, pronto! Mas olhe, quer saber? Deu-me uma coisa, atirei com o cavalo-marinho, e desatei a correr pelo campo fora, que nem uma doida! Só parei quando já não tinha forças para dar nem mais um passo…Senti as lágrimas a caírem-me pelos queixos. Depois começou a chover, e fiquei ali a receber aquela água toda, como se precisasse de lavar a alma. E tomei uma resolução: entrei na ribeira, e fui caminhando pelo açude adentro. Já tinha a água pelo pescoço, quando parece que levei uma sacudidela, olhe, há momentos do diabo, mas a gente também os vence…
A menina vai lá botar isto tudo? Mas não prante lá o meu nome, não? Envergonho-me! Atão está bem.
Quando o meu homem saiu da prisão, veio para casa, pois atão! A casa era dele e minha, e eu não sabia o que ele queria fazer. Era o que ele quisesse. Era o meu homem, o pai dos meus filhos, recebi-o na igreja, para o bem e para o mal, até morrer.
Ora, menina, atão, aquilo com o mudo aconteceu, pronto! A gente não pensamos nestas coisas, são tentações, e quando se vai a ver, já está feito! Ai! Mas fui tão feliz com ele! Tinha umas mãos! Ai, ele sabia, ele sabia como se fazem as coisas! Sabe, eu acho que tudo acontece porque tem que acontecer. Não há volta a dar-lhe! Ao princípio revoltei-me muito, mas depois aceitei. Tive tempo para pensar, para pensar muito! O mudo ensinou-me a amar de uma maneira diferente…e vê, depois do meu homem sair da prisão, ainda nasceu o meu Henrique…O meu homem mudou …tornou-se mais atencioso comigo, na cama, quero dizer…Não, nunca me chamou “ meu amor”, mas pronto, tinha um jeito diferente, mais preocupado com o meu sentir, mais desejoso de me fazer a vontade, para eu…enfim…sabe o que eu quero dizer, não sabe?
      A minha mãe, coitada, nunca soube como é uma mulher gozar com um homem! Eu fui feliz com dois…Com o meu homem, só depois de ele sair da prisão…Atão foi assim: quando veio, foi dormir num divã que tínhamos no sótão. Nem nunca falámos do mudo…Eu punha-lhe o comer à frente, tratava da casa, e ele lá ia prás terras, como se nada tivesse acontecido. Não falávamos muito, ele nunca foi de grandes conversas… Andámos nisto à volta de meio ano…Uma tarde, estava eu a pilar umas favas na cozinha, e sinto um olhar em cima de mim. Levantei a cabeça, e lá estava ele na soleira da porta, a olhar para mim muito sério. Eu olhei também para ele, e ficámos a olhar um para o outro uma eternidade. Não dissemos uma palavra! Olhe, não sei como aquilo foi, quando dei por mim, estávamos os dois a rebolar no chão …É como lhe digo! Ai que risada! A partir daí veio prá nossa cama, e olhe, foi até morrer… Nunca me chamou “ meu amor”, mas apanhou-lhe o jeito!

 O mudo entrou na minha vida para eu ser feliz! Nunca o esqueci, nem nunca vou esquecer! Olhe que já lá vão mais de 60 anos! Ai! O que é a vida! Tenho saudades dos dois por igual! E nunca me arrependi de nada! Ó menina, não ponha o meu nome no livro, pelas alminhas! Não quero cá agora problemas com os meus filhos, ainda era o que me havia de faltar! 

domingo, 8 de janeiro de 2017

Com a respiração...

Com a respiração
Entrecortada
De silenciosos temores
Abro-te uma brecha
Na alma parda da noite.
Nunca é demais
Correres ao sabor do vento
Sentes
Dormentes e tensos
Os afagos secretos
Impregnados
De líquidos acenos
Rabiscados no fragor das ondas
Também os violinos me crescem nas mãos
Como saber quando parar
Agora que já nem o sonho
Me espanta nas manhãs

Sonolentas que te remeto.