"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

quarta-feira, 17 de junho de 2015

O carrocel

Já há algum tempo que eu estava naquele antiquário morrendo de tédio.
Num domingo à tarde, um casal entrou na loja, e foi percorrendo com o olhar as diversas antiguidades, velharias e quinquilharias.
A mulher deteve-se em frente da prateleira onde eu estava exposto. Olhou-me demoradamente, e eu senti um frémito de prazer percorrendo-me o corpo. A atração foi mútua, pensei eu. Mas depressa os seus olhos se desligaram de mim e passearam por outros objetos da loja. Senti-me desiludido.
Algum tempo depois, a mulher voltou. O dono acudiu:
__É uma caixinha de música, sabia?
__ A sério?!
__Sim. Quer ouvir?
O dono pegou-me, e rodou o círculo onde os quatro cavalinhos de madeira estavam implantados. Dentro de mim soltou-se a música de embalar, enchendo o espaço de estrelas e encantamento.
__É isto mesmo que eu quero! Rui, olha, para o Afonso!
__ Mas para quê?
__ Para ele adormecer… para se acalmar, quando…percebes?
Aquelas palavras eivadas de mistério e ansiedade aguçaram a minha curiosidade. Antes de dar ordem para me embrulhar, as mãos da mulher afagaram gentilmente o meu corpo, desde o pináculo, os rebordos, passando pelos cavalinhos, pelo círculo branco que girava e comandava a música, até à base de madeira pintada de vermelho.
Não tardei a perceber. Mal chegaram a casa, a mulher correu a colocar-me num quartinho infantil, numa estante de onde convergiam duas caminhas dispostas em L. Nessa noite eu assisti ao ritual. Duas crianças em pijama entraram no quarto, riram, brincaram, saltaram sobre os colchões. A mãe, a mulher que me comprara, veio, contou-lhes uma história, aconchegou-os. Rodou o manípulo, os cavalos giraram, e a música desprendeu-se. A menina adormeceu quase instantaneamente.
O rapazinho soergueu a cabeça, e disse:
__Que lindo, mamã!
__Vá, dorme! __ cochichou a mãe, assentando um último beijo na testa do menino.
Apagou a luz, e deixou a porta do quarto entreaberta, permitindo que, do corredor, uma ténue faixa de claridade se projetasse no tapete do quarto.
Mas o rapazinho não adormecia. Constantemente chamava a mãe. A mãe chegava, rodava o meu manípulo, e a música soltava-se. O menino acalmava-se durante alguns instantes, a mãe saía, e tudo voltava ao mesmo. Finalmente adormeceu. Tudo ficou em silêncio. Eu também adormeci.
Fui acordado por uns gritos lancinantes a romperem a noite.
O rapaz gritava, aterrorizado, clamando pela mãe. Ela irrompeu pelo quarto, pegou no filho ao colo.
A criança tinha os olhos abertos, mas fixos, parecendo não ver. A mãe abraçava-o, proferindo palavras de conforto que não logravam romper o muro que os separava.
__ Acalma-te, meu filho, acalma-te! A mamã está aqui! A mamã está aqui!
Mas a criança continuava a berrar, encerrado no seu terror, percorrendo, solitário, a escuridão. A mãe chorava, impotente e em pânico.
Logo a seguir entrou no quarto o homem. Envolveu no seu abraço a mulher e o filho, sussurrando:
__Sssssshhhhh! Sssssssshhhhh!
De repente o homem saltou em direção à estante, pegou-me, fez girar o meu mecanismo, e a música fez-se ouvir. Pouco a pouco a criança foi-se acalmando, e acabou por adormecer. Eu ouvia o choro silencioso da mãe e pressentia a sua angústia e desespero. O homem saiu do quarto e a mãe ficou, culpabilizando-se, talvez, por não conseguir que a sua voz chegasse ao interior do seu menino. Quando a música parou, a mulher fê-la voltar ao início. Esta foi a primeira noite em casa desta família. Foi, talvez, a mais dura de todas. Aquela que me fez perceber a esperança que aquela mulher depositou em mim, quando me viu, pela primeira vez, no antiquário. Muitas outras noites se seguiram. Todas as noites eu trabalhava. De vez em quando repetiam-se estes episódios de terror. No dia a seguir a estas ocorrências, o menino acordava cansado, mas não se lembrava de nada. Eu fui percebendo a importância da minha música para aquela criança, mas, sobretudo, para a mãe. O Afonso cresceu. Os terrores noturnos foram reduzindo de frequência e intensidade, até acabarem definitivamente. E eu fui atirado, pelas mãos do rapaz, para o fundo de um caixote, na companhia de alguns peluches, spiderman´s , e tartarugas Ninja.
Durante alguns anos estive adormecido no sótão. Até que…
Um dia a tampa da caixa onde estava guardado levantou-se, e uma réstia de luz acordou-me. Ouvi uma exclamação de espanto. Era ela. Pegou-me com carinho, fez girar o meu manípulo, e a minha música ecoou naquele exíguo espaço.
Desde esse dia, tenho tido lugar de destaque entre as coisas de que ela mais gosta: os seus livros, e outros objetos de estimação. Até já fui estrela numa peça de teatro em que ela entrou, onde fui ovacionado de pé por uma casa cheia. Voltei a sentir-me importante. Todos os dias sou acariciado pelo seu olhar. E continuo, até hoje, a acalmá-la com a minha música, e, às vezes até, a inspirá-la.

Sinto-me amado.