"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

quarta-feira, 3 de junho de 2015

A aldeia dos sonhos perdidos

Naquela aldeia encaixada nas montanhas, só viviam pessoas idosas, viradas para si mesmas, dentro das suas casas tristes, onde, muitas vezes, nem a luz do sol deixavam entrar. Viviam entregues às saudades da juventude, e, pouco a pouco, foram deixando murchar os sonhos que em tempos moraram dentro delas. Até já se tinham esquecido de quando as varandas estavam repletas de flores, e as melodias que lhes nasciam na alma, irrompiam pelas gargantas e enchiam os campos de sons harmoniosos que ficavam a pairar no ar.
Nesse tempo, quando uma cantiga se escapava por uma porta ou uma janela, logo outra respondia do outro lado da aldeia. E outra do outro canto, e do outro, e do outro…
E quando andavam na labuta nos campos, era a mesma coisa. A atmosfera ficava prenhe da música dos pássaros e das cantigas que os camponeses cantavam ao desafio.
Havia jovens e crianças na aldeia, nesse tempo. Depois da escola as crianças corriam para a ribeira, para pescarem e nadarem. Os mais velhos tomavam conta dos mais novos, e ensinavam-nos a nadar, a escolher o melhor isco para as trutas, as bogas, os achigãs…
Nas longas tardes de verão, sentados ao sereno, sob a luz das estrelas e do luar, ouviam-se histórias acompanhadas com música, que os mais novos escutavam com atenção e religiosidade. No inverno, era ao calor da lareira que os pequeninos adormeciam, embalados pelas histórias dos avós. Assim aprendiam a interpretar os ciclos da vida, a escutar o palpitar da Natureza, a amarem-na, a respeitarem-na. Era uma aldeia feliz…
Mas as crianças cresceram e partiram, levando os seus sonhos na bagagem. A escola fechou, as ervas tomaram conta dos recreios e invadiram as salas de aula. Os campos ficaram ao abandono. Sem alma, muitas casas ameaçavam ruir de solidão e esquecimento. Os pais dessas crianças eram agora os idosos da aldeia. Passavam o dia inteiro lamuriando-se. Já não queriam saber de nada. Viviam dentro das casas, trancados nos seus problemas. Nem mesmo os que ainda podiam caminhar, se atreviam a ir à rua. Arrastavam-se de ombros descaídos, olhos postos no chão. Não ouviam os pássaros,  nem o silêncio da noite, e tinham esquecido o gesto de levantar a cabeça para olhar as estrelas…Muitos tinham emudecido, à força de não usarem as palavras para se expressarem… Estavam a deixar-se morrer. Tinham perdido os sonhos.
Um dia um jovem chegou à aldeia. Trazia estrelas nos olhos e sonhos na voz. E uma concertina. Chegou ao adro da igreja, sentou-se no meio do chão, com as pernas cruzadas e começou a tocar, com alma e entusiasmo. Tocou, tocou, tocou, tocou… Nas janelas, algumas cortinas curiosas levantaram-se cautelosamente, mas ninguém apareceu no adro. Ao fim de uma hora, o jovem partiu, e no ar ficou o eco das músicas que os idosos identificaram, depois de procurarem nos escaninhos da memória.
Naquela noite, muitos adormeceram com uma grande nostalgia no coração. A nostalgia da felicidade.
Eram quase três horas da tarde quando, no dia seguinte, a acalmia foi interrompida pela concertina do jovem. Ele tinha voltado. Agora caminhava por todas as ruas e vielas, tocando a sua concertina. Com um reportório renovado. E, ao fim de uma hora, partiu. Em todas as casas se gerou agora um sobressalto: que fazia ali aquele rapaz? Que queria ele? Tocava tão bem!
Muitos recordavam os dotes musicais que tinham deixado cair no esquecimento. Houve quem tivesse ido procurar os instrumentos que havia tocado em jovem, e experimentado a firmeza dos dedos agora rígidos, ou tivesse levado à boca os instrumentos de sopro…Houve quem tivesse começado a trautear timidamente as cantigas que entoara em tempos…Houve quem pensasse que não estava para cantigas…Houve que sentisse um estremecimento na alma…Houve quem chorasse de emoção…Mas as portas continuaram fechadas.
Porém, em todas elas, a expetativa ia tomando conta dos habitantes: voltaria o jovem no dia seguinte?
Naquela noite, houve quem não conseguisse dormir…
 Perto das 3 horas da tarde, adejavam cortinas impacientes por detrás das janelas das casas que circundavam o adro. Nas outras, colocavam-se os ouvidos de atalaia, e descerravam-se as janelas… Já passavam 10 minutos das 15 horas quando a música da concertina do jovem o fez anunciar, antes da sua figura desembocar no adro. Um suspiro de alívio de que só os próprios se aperceberam, soltou-se em uníssono dos peitos expectantes. De repente, uma porta abriu-se, soltando um dolente queixume. E os passos trémulos do ti Albano encaminharam-se para o meio do terreiro, onde estava o jovem. O ti Albano encostou o violino ao pescoço, rapou do arco, e começou a acompanhar a música que o jovem tocava. Os olhos do bom do velho estavam húmidos. Não foram precisas palavras para os dois se entenderem. Já tocavam há meia hora, quando a velha professora se aproximou timidamente com o seu cavaquinho. E as duas irmãs que moravam no fundo da aldeia, vieram com as suas vozes trémulas, mas ainda bonitas, acompanhar os músicos. E, já mesmo quase na altura do jovem partir, também os velhos da casa amarela se juntaram ao coro. Passou uma hora e o jovem partiu, sem uma palavra, deixando os idosos que se aventuraram a furar a solidão forçada, cheios de perguntas. Envergonhados, regressaram aos seus refúgios.
Naquela aldeia, algo estava a acontecer. Houve janelas que se abriram e deixaram o sol penetrar pelas casas. Houve quem viesse sentar-se na soleira da porta, à noite.
No dia seguinte, quase todas as janelas se abriram, e houve vizinhos que se saudaram. Havia sonhos a irromperem nas almas abandonadas.
À hora habitual todos estavam preparados para receberem a música nos seus corações. Mas o jovem não veio. Nem no outro dia, nem no outro, nem no seguinte. Houve quem chorasse de raiva, de desilusão. Houve quem caísse à cama, sem coragem para se levantar. Houve quem dissesse que já sabia que aquilo ia acontecer. Os aldeões sentiam-se traídos, sem saberem explicar a si mesmos porquê, já que nada lhes fora prometido. Estavam agora mais sós do que nunca.
Mas quando já o desespero  corroía a esperança, eis que soa a música da concertina. Desta vez, como se obedecendo a um sinal combinado, as portas abriram-se, e as pessoas saíram alegres para a rua. Poucas foram as que ficaram em casa. Só mesmo as que não puderam arrastar-se.

Hoje, passados que são dois anos sobre o aparecimento do Xico na aldeia, custa a acreditar que aquela banda de rock da terceira idade que toda a gente conhece, e que já ganhou alguns prémios, seja formada pelos habitantes daquela aldeia que só estavam à espera de morrer. Os milagres acontecem, se não perdermos a capacidade de sonhar. 

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