"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

O EGO


Há pessoas com o ego tão empolado, que acreditam que o mudo gira à volta delas e do seu umbigo.
 Há pessoas que fazem o que podem para sabotar o trabalho dos outros.
Há pessoas que se julgam imprescindíveis para que as coisas rolem. E se as coisas rolam, apesar da sua demissão, hasteiam o discurso de preteridas, porque as suas opiniões iriam estorvar as decisões dos outros.
Há pessoas que esquecem que democracia não é os outros fazerem o que elas desejam.
Há pessoas que às vezes precisam de largar a carga inútil para poderem avançar.

Há pessoas e pessoas.

sábado, 26 de setembro de 2015

O Coelhinho da menina

Era uma vez uma menina que adorava bebés. Quando alguém lhe perguntava:
__  De que é que tu gostas, minha menina?
Ela respondia:
__ De bebés.
Ou:
__ O que é que tu queres?
 __ Ela respondia:
__ Um bebé.
Se lhe perguntavam em que estava a pensar, respondia:
__ Num bebé. Eu queria um bebé!...
Os adultos passavam a vida a fazer-lhe sempre as mesmas perguntas, só para ouvirem as mesmas respostas de sempre. E achavam muita graça à menina e riam-se com as suas tiradas. Mas a menina não percebia onde estava a graça.
Um dia a família foi visitar uns tios da menina, que viviam muito looooonge, lá para os lados da capital. Esse lugar chamava-se Lugar de Murches. A casa dos tios tinha um enorme quintal com uma horta. Nos fins-de semana e depois do trabalho, o tio cultivava tomates, abóboras, uvas, cebolas e outras coisas. Lá havia uma capoeira, um pombal, e até…vejam lá! Coelhos. Em casa da avó da menina também havia capoeira com galinhas, mas a avó da menina não gostava que  brincasse com elas, pois dizia que lhe podiam furar os olhos. E também havia um pombal grande, que o pai tinha construído, com muitos pombos. Coelhos é que a menina nunca tinha visto. E ficou ali, muito espantada, a olhar para eles. O tio percebeu a admiração da menina, e, como gostava muito desta sobrinha, filha da sua irmã mais nova, tirou da coelheira um coelhinho branco que mais parecia uma bola de algodão, e colocou-o no colo da menina. A menina estremeceu de contente. Começou a fazer-lhe festinhas, com toda a delicadeza, a dar-lhe beijinhos, a falar com ele com toda a ternura. O bichinho aninhou-se no colo da menina.
O tio da menina enterneceu-se, e disse:
__ Olha, olha, o coelho gostou de ti.
A menina não respondeu: abraçou-se ao coelho, esfregou o rosto no pelo do animal,  e só o deixou voltar para a coelheira, quando o tio lhe explicou que o bichinho já devia estar com saudades da mãe.
Nos oito dias que ali passaram, a menina só queria estar junto daquele coelhinho, e o tio satisfez-lhe a vontade.
O grande problema foi na hora de voltar para casa. A menina agarrou-se ao bicho, e chorava, chorava, chorava.
__ Eu gosto muito dele! E ele também gosta de mim! Eu não quero ir embora sem o meu Coelhinho!
O tio não conseguiu resistir à tristeza da sobrinha, e declarou:
__Bom, isto foi um caso de amor à primeira vista. Pois o coelho é teu, minha joia!  
Quando a menina ouviu estas palavras, o seu contentamento não teve limites. Abraçou o tio com um bracinho, enquanto com o outro segurava o seu tesouro contra o peito.
O tio arranjou uma caixa de cartão, e fez-lhe uns furos para o coelhinho poder  respirar. A pequena bem queria fazer a viagem com ele ao colo, mas o pai disse que não, que ele ia sujar o carro todo. E quando o pai dizia que não, era mesmo não. E a caixa viajou no porta-bagagens da carrinha. A pequena estava constantemente empoleirada no banco, sem tirar os olhos da caixa, com medo de que ela pudesse desaparecer. Naquele tempo ainda ninguém tinha inventado as cadeiras nem os cintos de segurança nos carros. A viagem era estafante, e ela acabou por adormecer.
Quando chegaram a casa, onde decidiram colocar o coelho? No pombal. A menina ainda sugeriu que o queria a dormir na sua cama, mas o pai disse, meio sério, meio a rir:
__ Tu não sabes o que dizes!
O pombal, além das casinhas para cada casal de pombos, tinha um espaço muito grande, com rede a toda a volta, para eles poderem voar, e, por isso, o coelhinho, ocupou uma das casinhas do rés-do-chão que estava vaga. E ali ficou, em são convívio com os pombos. E a garotinha nunca mais falou em bebés.
Certo dia, a menina ouviu uma conversa que a deixou intrigada. O caseiro dizia ao pai que devia dar milho e água ao coelho, para crescer mais depressa e ficar muito saboroso.
O tio tinha-lhe ensinado que os coelhos gostavam de cenouras, alface, couves, e o Zé da Volta queria dar-lhe milho? Ela sabia muito bem o que queria dizer saboroso, porque o pai, às vezes, quando estava a comer, dizia:
__Ó mulher, isto está muito saboroso!
Mulher era como o pai chamava a mãe. E fazia uma cara de contentamento, por isso, saboroso é uma coisa boa, uma coisa de que se gosta.
A menina achava que o seu Coelhinho já era bastante saboroso, pois ela gostava muito dele, mas, se ainda ia ficar mais saboroso, melhor. Por isso não se espantou, quando o seu Coelhinho começou a ser alimentado com milho e água. Ao princípio, o coelho parecia não gostar muito desta dieta.
__ Olha, Coelhinho, é muito importante! Tens que comer, para cresceres, e ficares muito saborooooso, sim?__ explicava a menina com muita meiguice. E acompanhava as explicações fingindo levar o milho à boca e mastigar.
__Tão saboroso! __dizia.
Parece que ele percebeu, pois acabou por comer e nunca mais recusou este alimento.
Ela continuava a pegar-lhe ao colo, a fazer-lhe festinhas, a dar-lhe miminhos e a conversar com ele. Mas cada vez era lhe era mais difícil pegar nele.  Estava tão pesado!
Um dia a menina foi dar com o irmão a correr atrás do seu Coelhinho, fora do pombal. E disse-lhe:
__Não faças isso! O Coelhinho não gosta! Fica muito cansado!
__Ora! Quando for para a panela, o cansaço passa-lhe.
__Para a panela?! Ele não vai a lado nenhum sem mim!__ respondeu, ainda sem perceber o alcance das palavras do irmão. Mas as gargalhadas que ele soltou  feriram-lhe o coração.
__Também queres ir para a panela?! Em arroz de cabidela?!
 A menina ficou parada, de boca aberta, olhos escancarados, a olhar o irmão. De súbito desatou numa gritaria tão grande, tão grande, que a mãe acudiu.
__O que fizeste à tua irmã?
__Eu? Nada! Só lhe disse a verdade!
A pequena soluçava, sem conseguir falar. A mãe pegou-lhe ao colo, a tentar confortá-la
__Ele diiiiii….sse…que…o coooo…eeeeee…lhinho vai prá paneeeeee…laaaa…não vai, pois, não, mamã?
A mãe lançou um olhar furibundo ao filho mais velho.
E, enquanto lhe afagava os cabelos, dizia-lhe:
__Sabes, filhinha, os coelhos são para comer, como as galinhas…!
__Mas o meu Coelhinho não, pois não, mamã?
__Mas arranjamos outro, sim, meu amor?
__NÃOOOOOOOOOOOOOO! O meu Coelhinho não!
E a menina continuava a soluçar.
__ Pronto, está bem, eu vou falar com o papá, sim?
__Siiiiiiiiim ! O meu Coelhinho não, o meu Coelhinho não.O coelho da menina ficou em paz durante algum tempo. Certa manhã, a garota chegou ao pombal para brincar com o Coelhinho, e ele não estava lá. A mãe então contou-lhe que o Coelhinho adoecera e morrera durante a noite e que o caseiro o levara, para enterrar na quinta. Ela já vira alguns pombos-bebés mortos, e já sabia que a morte apaga a dor das pessoas e dos animais. Por isso chorou, com saudades do Coelhinho. E enquanto as lágrimas iam correndo pela carinha dela, ela dizia para a mãe:  
  __Olha, mamã....eu quero... um bebé, sim...?

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Pensão de luxo

À Marimília foram sempre poupados os duros trabalhos do campo, demasiado pesados para a sua humilde compleição. Mas desde novinha que se mostrou hábil a preparar as refeições, a apurar os guisados, os assados, a escolher as ervas e os temperos capazes de transformarem uma simples refeição em algo delicioso e diferente, numa explosão de sabores irresistível e deliciosa. Das suas mãos saiam os pratos mais apetitosos, aptos a satisfazerem os paladares mais exigentes e apaziguarem os estômagos mais carentes.
Fez-se cozinheira. Era requisitada para festas, casamentos, batizados… Mas era preciso comer todos os dias, não só nos dias de festa. Especializou-se na confeção de enchidos. Dos arredores, e até mesmo de Lisboa, onde os conterrâneos apregoavam os seus dotes, chegavam encomendas das suas maravilhosas chouriças, morcelas, alheiras e farinheiras, que não tinham igual. Em breve era ela a única fonte de rendimento, o homem da casa, já que o seu não conseguia granjear o sustento, sempre doente, com aquela tosse cavernosa a encher as noites de arranques e roncos aflitivos. Marimília cedo percebeu que a única filha, a pequena Alice, nunca herdaria a sua profissão. Por mais que tentasse introduzi-la nos segredos da cozinha, a pequena não mostrava gosto nem jeito. Enjoavam-na os odores dos temperos, deixava esturricar os refogados, os estufados resultavam enxaguados e sensaborões, as sopas ora salgadas ora insonsas…
Nunca conseguiria sustentar-se, se ela não lhe encaminhasse os passos. Que a pequena era bonita, disso não havia qualquer dúvida. E tinha qualquer coisa, que nem ela saberia dizer bem o quê, talvez o olhar ingénuo, num corpo que desabrochava bem provido de atrativos…Se as duas fossem espertas, esses atributos poderiam conquistar-lhe um marido rico e uma boa vida…
Alice foi crescendo. A mãe ia-lhe alimentando a vaidade, e os luxos. A rapariga até se julgaria rica, não fosse a imposição da mãe para ir trabalhar na fábrica de lanifícios da aldeia, pois já tinha bom corpo para isso. Fez o pedido ao sr. Antoninho, o  dono da fábrica. A rapariga aprendia bem, tinha uma letra bonita, e foi contratada para ajudante do guarda-livros. O seu bom feitio, aliado a dois palmos de cara atraentes, depressa conquistaram a atenção do patrão.
Quando o sr. Antoninho enviuvou, Marimília entendeu que o destino estava a jogar a seu favor, e começou a conceber o plano. Foi sondando a sua Alice, enchendo-lhe a cabeça de sonhos, e dando-lhe instruções precisas de atuação. A rapariga insinuava-se cada vez mais, mas o patrão continuava mergulhado na sua mágoa.
__ Tens que ser mais esperta, Alice! __dizia-lhe a mãe __Olha que não hão de faltar por aí lambisgoias prontinhas para lhe deitar a mão!
__ Oh! Minha mãe! O pobre não tem olhos para ninguém, anda tristinho como a noite!
__Pois sim, mas a tristeza não vai durar sempre, e quando acabar, tens que estar lá, e ele perceber que te preocupas …
E Marimília fechava-se nos seus pensamentos, endrominando planos …
Até que um dia…
__Olha, pergunta lá ao teu patrão se gosta de chouriças…
A resposta veio, célere.
__ Adora, minha mãe!
__Pois então, quando vier o tal dia do mês, avisa-me!
__ O tal dia do mês?!
__ Sim, minha parva, as regras!...
Marimília acreditava que o caminho certo para chegar ao coração de um homem era através do estômago, e, se ele se mostrasse renitente, havia sempre outros truques para ajudar. Bastava uma gotinha da “história” de Alice, nem de mais, nem de menos…apenas na conta certa. Resultava sempre.
Num sábado à tarde, Alice apresentou-se no escritório da fábrica, onde tinha a certeza que iria encontrar o patrão. Uma cestinha forrada com um paninho de linho bordado, onde não faltava uma boroa, uma garrafinha de vinho tinto, outra de aguardente para assar a chouriça na pequena assadeira de barro. O decote mais aberto que habitualmente, como que sem dar por isso, a deixar entrever carnaduras virginais…
__ Para o patrão, um miminho só para o ver sorrir outra vez.
Antoninho comoveu-se, e quis partilhar com Alice a iguaria…Mas a rapariga apenas aceitou um cantinho de boroa, para não fazer desfeita, já que comia tantas chouriças, que, por vezes as enjoava…
Ao chegar a casa, a mãe esperava-a como o caçador espreita a sua presa…Alice trazia no rosto um rubor prazenteiro, e um sorriso largo…
__ Então, ele comeu a chouriça?
__ Comeu, minha mãe, até chupou o baraço…
__Está no papo, filha!...O homem é teu, é teu…
E foi. Antoninho teve de vencer a resistência da mãe, da sogra, que com ele cortou relações e exigiu que lhe fossem entregues os três netos.
Do casamento nasceram duas meninas. Mas, apesar da vida desafogada, das  criadas que lhe poupavam o trabalho da casa, Alice, agora Dona Alicinha, não foi feliz. Antoninho adoeceu, com uma doença estranha, incurável, que lhe tomou conta do espírito e lhe chupou o corpo, uma doença que o tornou instável, louco de ciúme, violento. Dona Alicinha ficou viúva. Após uma querela interminável pela posse dos bens, pouco mais lhe restou que a casa onde vivia, e onde Antoninho já vivera com a primeira mulher. Era uma casa enorme, recheada com móveis luxuosos, tapetes orientais, porcelanas, salvas e faqueiros de prata, bragal de linho bordado, colchas de rendas, sedas e cetins. Dona Alicinha viu-se a braços com um casarão que não sabia como manter. Valeu-lhe o espírito empreendedor da mãe, que, mais uma vez, veio em seu auxílio. Instalou-se no casarão, ou melhor dizendo, na cozinha. Em poucos dias a decisão estava tomada, e, após um mês para reorganização dos espaços, a casa da Dona Alicinha abriu-se ao público para receber hóspedes.

Não tardou que a fama das ótimas instalações e comida primorosa da casa da Dona Alicinha chegasse longe. Para isso contribuiu, certamente, a calorosa anfitriã. Nunca ali faltavam os que procuravam repouso, consolo, ou refrigério no colo e nos braços sempre generosos da Dona Alicinha, que a nenhum hóspede negava os seus talentos. 

segunda-feira, 22 de junho de 2015

O Elevador

Um suor frio perlava-lhe a fronte.
Ficara novamente encurralada no elevador. A repetição desta situação provocava-lhe náuseas de revolta. A administradora do condomínio andava a brincar com os moradores! Pois!...Morava no rés-do-chão...
Furiosa, carregava no alarme ininterruptamente. Eis senão quando…
Espanto!...A porta do elevador abriu-se!...
O vizinho do sétimo, um calmeirão gorduroso, barba por fazer, entra no elevador e sussurra:
__Sua marota! Outra vez a avariar o elevador?!
E carrega no botão para a cave.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

O carrocel

Já há algum tempo que eu estava naquele antiquário morrendo de tédio.
Num domingo à tarde, um casal entrou na loja, e foi percorrendo com o olhar as diversas antiguidades, velharias e quinquilharias.
A mulher deteve-se em frente da prateleira onde eu estava exposto. Olhou-me demoradamente, e eu senti um frémito de prazer percorrendo-me o corpo. A atração foi mútua, pensei eu. Mas depressa os seus olhos se desligaram de mim e passearam por outros objetos da loja. Senti-me desiludido.
Algum tempo depois, a mulher voltou. O dono acudiu:
__É uma caixinha de música, sabia?
__ A sério?!
__Sim. Quer ouvir?
O dono pegou-me, e rodou o círculo onde os quatro cavalinhos de madeira estavam implantados. Dentro de mim soltou-se a música de embalar, enchendo o espaço de estrelas e encantamento.
__É isto mesmo que eu quero! Rui, olha, para o Afonso!
__ Mas para quê?
__ Para ele adormecer… para se acalmar, quando…percebes?
Aquelas palavras eivadas de mistério e ansiedade aguçaram a minha curiosidade. Antes de dar ordem para me embrulhar, as mãos da mulher afagaram gentilmente o meu corpo, desde o pináculo, os rebordos, passando pelos cavalinhos, pelo círculo branco que girava e comandava a música, até à base de madeira pintada de vermelho.
Não tardei a perceber. Mal chegaram a casa, a mulher correu a colocar-me num quartinho infantil, numa estante de onde convergiam duas caminhas dispostas em L. Nessa noite eu assisti ao ritual. Duas crianças em pijama entraram no quarto, riram, brincaram, saltaram sobre os colchões. A mãe, a mulher que me comprara, veio, contou-lhes uma história, aconchegou-os. Rodou o manípulo, os cavalos giraram, e a música desprendeu-se. A menina adormeceu quase instantaneamente.
O rapazinho soergueu a cabeça, e disse:
__Que lindo, mamã!
__Vá, dorme! __ cochichou a mãe, assentando um último beijo na testa do menino.
Apagou a luz, e deixou a porta do quarto entreaberta, permitindo que, do corredor, uma ténue faixa de claridade se projetasse no tapete do quarto.
Mas o rapazinho não adormecia. Constantemente chamava a mãe. A mãe chegava, rodava o meu manípulo, e a música soltava-se. O menino acalmava-se durante alguns instantes, a mãe saía, e tudo voltava ao mesmo. Finalmente adormeceu. Tudo ficou em silêncio. Eu também adormeci.
Fui acordado por uns gritos lancinantes a romperem a noite.
O rapaz gritava, aterrorizado, clamando pela mãe. Ela irrompeu pelo quarto, pegou no filho ao colo.
A criança tinha os olhos abertos, mas fixos, parecendo não ver. A mãe abraçava-o, proferindo palavras de conforto que não logravam romper o muro que os separava.
__ Acalma-te, meu filho, acalma-te! A mamã está aqui! A mamã está aqui!
Mas a criança continuava a berrar, encerrado no seu terror, percorrendo, solitário, a escuridão. A mãe chorava, impotente e em pânico.
Logo a seguir entrou no quarto o homem. Envolveu no seu abraço a mulher e o filho, sussurrando:
__Sssssshhhhh! Sssssssshhhhh!
De repente o homem saltou em direção à estante, pegou-me, fez girar o meu mecanismo, e a música fez-se ouvir. Pouco a pouco a criança foi-se acalmando, e acabou por adormecer. Eu ouvia o choro silencioso da mãe e pressentia a sua angústia e desespero. O homem saiu do quarto e a mãe ficou, culpabilizando-se, talvez, por não conseguir que a sua voz chegasse ao interior do seu menino. Quando a música parou, a mulher fê-la voltar ao início. Esta foi a primeira noite em casa desta família. Foi, talvez, a mais dura de todas. Aquela que me fez perceber a esperança que aquela mulher depositou em mim, quando me viu, pela primeira vez, no antiquário. Muitas outras noites se seguiram. Todas as noites eu trabalhava. De vez em quando repetiam-se estes episódios de terror. No dia a seguir a estas ocorrências, o menino acordava cansado, mas não se lembrava de nada. Eu fui percebendo a importância da minha música para aquela criança, mas, sobretudo, para a mãe. O Afonso cresceu. Os terrores noturnos foram reduzindo de frequência e intensidade, até acabarem definitivamente. E eu fui atirado, pelas mãos do rapaz, para o fundo de um caixote, na companhia de alguns peluches, spiderman´s , e tartarugas Ninja.
Durante alguns anos estive adormecido no sótão. Até que…
Um dia a tampa da caixa onde estava guardado levantou-se, e uma réstia de luz acordou-me. Ouvi uma exclamação de espanto. Era ela. Pegou-me com carinho, fez girar o meu manípulo, e a minha música ecoou naquele exíguo espaço.
Desde esse dia, tenho tido lugar de destaque entre as coisas de que ela mais gosta: os seus livros, e outros objetos de estimação. Até já fui estrela numa peça de teatro em que ela entrou, onde fui ovacionado de pé por uma casa cheia. Voltei a sentir-me importante. Todos os dias sou acariciado pelo seu olhar. E continuo, até hoje, a acalmá-la com a minha música, e, às vezes até, a inspirá-la.

Sinto-me amado.

quarta-feira, 3 de junho de 2015

A aldeia dos sonhos perdidos

Naquela aldeia encaixada nas montanhas, só viviam pessoas idosas, viradas para si mesmas, dentro das suas casas tristes, onde, muitas vezes, nem a luz do sol deixavam entrar. Viviam entregues às saudades da juventude, e, pouco a pouco, foram deixando murchar os sonhos que em tempos moraram dentro delas. Até já se tinham esquecido de quando as varandas estavam repletas de flores, e as melodias que lhes nasciam na alma, irrompiam pelas gargantas e enchiam os campos de sons harmoniosos que ficavam a pairar no ar.
Nesse tempo, quando uma cantiga se escapava por uma porta ou uma janela, logo outra respondia do outro lado da aldeia. E outra do outro canto, e do outro, e do outro…
E quando andavam na labuta nos campos, era a mesma coisa. A atmosfera ficava prenhe da música dos pássaros e das cantigas que os camponeses cantavam ao desafio.
Havia jovens e crianças na aldeia, nesse tempo. Depois da escola as crianças corriam para a ribeira, para pescarem e nadarem. Os mais velhos tomavam conta dos mais novos, e ensinavam-nos a nadar, a escolher o melhor isco para as trutas, as bogas, os achigãs…
Nas longas tardes de verão, sentados ao sereno, sob a luz das estrelas e do luar, ouviam-se histórias acompanhadas com música, que os mais novos escutavam com atenção e religiosidade. No inverno, era ao calor da lareira que os pequeninos adormeciam, embalados pelas histórias dos avós. Assim aprendiam a interpretar os ciclos da vida, a escutar o palpitar da Natureza, a amarem-na, a respeitarem-na. Era uma aldeia feliz…
Mas as crianças cresceram e partiram, levando os seus sonhos na bagagem. A escola fechou, as ervas tomaram conta dos recreios e invadiram as salas de aula. Os campos ficaram ao abandono. Sem alma, muitas casas ameaçavam ruir de solidão e esquecimento. Os pais dessas crianças eram agora os idosos da aldeia. Passavam o dia inteiro lamuriando-se. Já não queriam saber de nada. Viviam dentro das casas, trancados nos seus problemas. Nem mesmo os que ainda podiam caminhar, se atreviam a ir à rua. Arrastavam-se de ombros descaídos, olhos postos no chão. Não ouviam os pássaros,  nem o silêncio da noite, e tinham esquecido o gesto de levantar a cabeça para olhar as estrelas…Muitos tinham emudecido, à força de não usarem as palavras para se expressarem… Estavam a deixar-se morrer. Tinham perdido os sonhos.
Um dia um jovem chegou à aldeia. Trazia estrelas nos olhos e sonhos na voz. E uma concertina. Chegou ao adro da igreja, sentou-se no meio do chão, com as pernas cruzadas e começou a tocar, com alma e entusiasmo. Tocou, tocou, tocou, tocou… Nas janelas, algumas cortinas curiosas levantaram-se cautelosamente, mas ninguém apareceu no adro. Ao fim de uma hora, o jovem partiu, e no ar ficou o eco das músicas que os idosos identificaram, depois de procurarem nos escaninhos da memória.
Naquela noite, muitos adormeceram com uma grande nostalgia no coração. A nostalgia da felicidade.
Eram quase três horas da tarde quando, no dia seguinte, a acalmia foi interrompida pela concertina do jovem. Ele tinha voltado. Agora caminhava por todas as ruas e vielas, tocando a sua concertina. Com um reportório renovado. E, ao fim de uma hora, partiu. Em todas as casas se gerou agora um sobressalto: que fazia ali aquele rapaz? Que queria ele? Tocava tão bem!
Muitos recordavam os dotes musicais que tinham deixado cair no esquecimento. Houve quem tivesse ido procurar os instrumentos que havia tocado em jovem, e experimentado a firmeza dos dedos agora rígidos, ou tivesse levado à boca os instrumentos de sopro…Houve quem tivesse começado a trautear timidamente as cantigas que entoara em tempos…Houve quem pensasse que não estava para cantigas…Houve que sentisse um estremecimento na alma…Houve quem chorasse de emoção…Mas as portas continuaram fechadas.
Porém, em todas elas, a expetativa ia tomando conta dos habitantes: voltaria o jovem no dia seguinte?
Naquela noite, houve quem não conseguisse dormir…
 Perto das 3 horas da tarde, adejavam cortinas impacientes por detrás das janelas das casas que circundavam o adro. Nas outras, colocavam-se os ouvidos de atalaia, e descerravam-se as janelas… Já passavam 10 minutos das 15 horas quando a música da concertina do jovem o fez anunciar, antes da sua figura desembocar no adro. Um suspiro de alívio de que só os próprios se aperceberam, soltou-se em uníssono dos peitos expectantes. De repente, uma porta abriu-se, soltando um dolente queixume. E os passos trémulos do ti Albano encaminharam-se para o meio do terreiro, onde estava o jovem. O ti Albano encostou o violino ao pescoço, rapou do arco, e começou a acompanhar a música que o jovem tocava. Os olhos do bom do velho estavam húmidos. Não foram precisas palavras para os dois se entenderem. Já tocavam há meia hora, quando a velha professora se aproximou timidamente com o seu cavaquinho. E as duas irmãs que moravam no fundo da aldeia, vieram com as suas vozes trémulas, mas ainda bonitas, acompanhar os músicos. E, já mesmo quase na altura do jovem partir, também os velhos da casa amarela se juntaram ao coro. Passou uma hora e o jovem partiu, sem uma palavra, deixando os idosos que se aventuraram a furar a solidão forçada, cheios de perguntas. Envergonhados, regressaram aos seus refúgios.
Naquela aldeia, algo estava a acontecer. Houve janelas que se abriram e deixaram o sol penetrar pelas casas. Houve quem viesse sentar-se na soleira da porta, à noite.
No dia seguinte, quase todas as janelas se abriram, e houve vizinhos que se saudaram. Havia sonhos a irromperem nas almas abandonadas.
À hora habitual todos estavam preparados para receberem a música nos seus corações. Mas o jovem não veio. Nem no outro dia, nem no outro, nem no seguinte. Houve quem chorasse de raiva, de desilusão. Houve quem caísse à cama, sem coragem para se levantar. Houve quem dissesse que já sabia que aquilo ia acontecer. Os aldeões sentiam-se traídos, sem saberem explicar a si mesmos porquê, já que nada lhes fora prometido. Estavam agora mais sós do que nunca.
Mas quando já o desespero  corroía a esperança, eis que soa a música da concertina. Desta vez, como se obedecendo a um sinal combinado, as portas abriram-se, e as pessoas saíram alegres para a rua. Poucas foram as que ficaram em casa. Só mesmo as que não puderam arrastar-se.

Hoje, passados que são dois anos sobre o aparecimento do Xico na aldeia, custa a acreditar que aquela banda de rock da terceira idade que toda a gente conhece, e que já ganhou alguns prémios, seja formada pelos habitantes daquela aldeia que só estavam à espera de morrer. Os milagres acontecem, se não perdermos a capacidade de sonhar. 

sexta-feira, 1 de maio de 2015

A minha estante

Manifesto anti cultura? Credo! Eu cá não concordo com nada disso! Eu acho que a cultura e os livros são muito importantes.
            Por acaso, aqui há coisa de um mês, enquanto o meu Quim lia o jornal, eu estava no sofá, à espera de dar “ A Casa Segredos”, e de repente lembrei-me:
           _Ó Quim, já sei o que vamos pôr naquela parede! Há tanto tempo que andamos a pensar! Vamos comprar uma estante, e depois enchêmo-la de livros!...
         __Hem? P´ra quê?
         __Então, alguma coisa temos de lá pôr! E tu gostas tanto de ler!
         Sabem, o meu Quim está sempre a ler, a ler, a ler, sempre agarrado ao jornal. Eu cá também gosto de ler, mas não é assim tanto como ele! Não passo horas a fio com a cabeça enfiada na leitura, nem assino nenhuma revista, para quê? Sempre que vou ao supermercado, pego nas revistas, leio os artigos que me apetecem, e até tomo nota dos horários dos programas da televisão que quero ver!
               Bom, mas isto para dizer : Lá o convenci a comprar a estante, e, agora, é um regalo olhar para aquela parede, os livros todos encarreiradinhos, alinhadinhos…Na primeira prateleira estão os de pele castanha com letras douradas, na segunda os vermelhos e depois os azuis…Está mesmo linda de se ver…Claro que não ia lá pôr aqueles livrecos que andam por aí, cada um na sua cor, uns grandes, outros pequenos, não!...Isso é horrível!...Eu gosto de os ver assim, todos do mesmo tamanho! A nossa sala ficou um espanto! Ah! A última prateleira ainda não tem livros, porque a coleção de livros pretos com letras douradas, disse-nos o homem que os vende, ainda vai tardar a chegar…
              Já prometi a mim própria que, um dia destes, até pego num, e vou começar a ler…E até sou capaz de convencer o meu Quim, a começar, também ele, a ler um livrinho, e desistir das assinaturas d´A Bola, do Record, do Mundo Desportivo

           Então, já que cá estão, e estão pagos, sempre se poupa o dinheiro das assinaturas dos jornais…

terça-feira, 31 de março de 2015

Calou-se a voz

Calou-se a voz
A voz que do seio da terra
Irrompia
Em golfadas transbordantes
 De silêncios

Calou-se a voz
A voz ora branda, ora brava,
Inquietante e lúcida
Nas noites brancas
Nas madrugadas insones
e translúcidas

Calou-se a voz
A voz que ressoava pelas brenhas
Escusas e obscuras
Onde só o eco a agarimava
No seu seio oblíquo e denso.

Calou-se a voz
A voz que mantinha
Meus saltos suspensos
Sobre os medos

Calou-se a voz
A voz de mãos doces
Que me sustinha
Nos sobressaltos da morte. 

segunda-feira, 30 de março de 2015

Débil coração

Caminha
Na manhã cálida e clara
Pela alameda
Sob a pérgula de lilases.

Vagueiam-lhe
Pelas costas
Os negros cabelos

Brincam-lhe no rosto
Sob a brisa branda
Bailarinas farripas

Transparecem
Sob a camisa de bretanha
Que rasa o chão
E se abre em leque
Rodeando-lhe o compasso
Suas longas pernas

Caminha
Absorta na canção
Que lhe baila nos lábios
Desvela-lhe o sol
Suas doces transparências

Acompanham-lhe
A cadência dos passos suaves
Os seios soltos e ligeiros

Assentam
Sobre o tapete relvado
Alegres os pés
Breves e descalços

Rodeia-lhe
Um bracelete
De campainhas bravas
O pulso
Aconchega
De encontro ao peito
Um braçado silvestre de boninas

Oh! Meu débil coração!
Que por tão efémero
Prazer congeminas
Ser, num ai ligeiro,
Esse inseto
Que pousa prazenteiro

No branco braçado de boninas!

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Vozes ancestrais


Ouço as suas vozes que saturaram o ar de gemidos, gritos, e rezas. E de desespero. E de esperança, de risos, de gargalhadas, de cânticos e louvores… Que festejaram a vida, e, por vezes, a morte quando ela era libertação. Identifico-lhes os rostos sulcados por uma vida difícil, as mãos rudes que semearam e plantaram e colheram e distribuíram e alimentaram, amaram e perdoaram e amortalharam. E limparam poucas vezes as suas lágrimas, suores e fezes, e muitas as lágrimas, suores e fezes dos outros.
E se deitaram em colchões de folhelho e de palha que eles próprios semearam e plantaram e regaram, colheram e secaram, envoltos por linho que suas mãos teceram. Colchões onde descansaram, e amaram, onde fizeram os seus filhos, os deram à luz, e por vezes os amortalharam… 
É quando caminho por espaços abertos, debaixo do céu que me cobre, rodeada por árvores, a maioria já aqui estava quando nasci, que essas vozes se sobrepõem aos ruídos longínquos da cidade, ao levantar da folhagem seca por uma brisa que viaja, ao ladrar dos cães nos quintais, aos motores elétricos da regas ou dos cortadores da relva, ao pipilar dos pássaros.
Furam as fragilidades dos muros que a vida quotidiana à minha volta ergue, e que eu mesma alimento. E é esse húmus que me corre nas veias tumultuosas, e essas as vozes que ouço quando me calo, para que jamais me esqueça que sou herdeira desses homens e mulheres onde essas vozes habitaram    

E sei então de onde venho, natureza de homens e mulheres ligados à terra que no segredo do seu coração foram elaborando o milagre do renascer. Homens e mulheres que sofreram injustiças e agravos, que caíram e se levantaram, que nos escombros das suas fraquezas construíram os alicerces de uma fortaleza que os preparou para as intempéries da vida.