"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Terrine de lapin

   Já não a podia ouvir…” Tenho tanta pena de partir e deixar cá os grandes companheiros da minha vida!”…
Ingratidão, é o que é…Eu já lá trabalho há mais de quarenta anos…ainda não tinha feito os dezasseis…E o que eu lhe tenho aturado! Mas os grandes companheiros da vida dela eram os gatos…os gatos é que ela tinha pena de cá deixar, quando fosse prestar contas a Deus…e que grandes contas é que ela tem que prestar, ai tem, tem, tantas crianças com fome por esse mundo fora, e ela :“ os meus amores, os meus filhinhos” para os gatos, claro…Credo, isso até é pecado!...
Bem, verdade seja dita, que eu pensava muitas vezes : “ a minha senhora tem razão! Se ela morre primeiro que os gatos…habituados a tudo do bom e do melhor…” Eu gatos, puffff! Ainda se fosse um canarinho…
Pois nem de propósito…andava eu fartinha de a ouvir, e a morder a língua, para não lhe dar uma daquelas respostas, quando…pumba! Li numa revista que trouxe a sobrinha da minha senhora…lá em África…ou seria na Ásia? Já nem sei…pois, eu li, que lá nesses lugares, quando os mortos morrem, não, quero dizer, quando os vivos morrem, eles…credo! Que selvagens!...comem-nos! Eles pensam que, assim, ficam com a mesma sabedoria, força e inteligência desses que comem…
Pois a minha senhora comeu uma terrina de lapã…não, não é assim, é terrine, diz a minha senhora, é um nome estrangeiro, que eu dessas coisas não sei, só fiz a 4ª classe…antiga, que vale mais do que agora essas universidades onde não aprendem nada…
Então fiz a terrine de lapã sem lapã, está bem de ver…tinha que ser qualquer coisa picada, que a carne era muito dura…
Coitadinha da minha senhora!...Já anda mais animadita… Os gatinhos sempre morreram antes dela, como ela queria…Claro, tive que lhe dizer que os encontrei mortos no quintal, e que os da Câmara os vieram buscar para os enterrar…ainda se aborreceu comigo, queria-os enterrados no jazigo da família…felizmente que a sobrinha lá lhe fez ver que aquilo era um disparate…
Ai o que ela chorou, Santa mãe do Céu! Ainda chora, de vez em quando, a olhar para as fotografias dos gatinhos…Mas o tempo tudo cura, não é verdade?

Bem… Deixa-me cá ir fazer o almocinho da minha senhora…Hoje vai ser bifinhos com cogumelos…O que ela gosta de carne…Ai, eu não! Enjoei, não sei porquê…carne, é coisa que me não atravessa os gorgomilos…