"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

sábado, 19 de abril de 2014

Um engano qualquer pessoa tem

S
 ou uma mulher de hábitos. He! He! He! He! Tenho um frasquito de vidro, onde vou metendo as moeditas pretas. Para as minhas gulodices, sabem! Todos os dias eu vou lá, e tiro as moeditas necessárias para o meu donutezito, aqui na pastelaria ao lado. Faço questão de pagar com as moeditas que vou juntando no frasquito.
Mas…sabem, contar as moedas, não é fácil…também a vista já não é o que era…às vezes, engano-me, e chego à pastelaria, e lá falta um centimozito. Ah! Mas a rapariga, dá-me sempre o meu donut. Sempre! Quer dizer: dava! Não é que hoje, me disse descaradamente, que não mo podia dar, que faltava um cêntimo? Eu disse-lhe: “ Mas, ó Lurdinhas, se me dás sempre o donut, porque é que hoje não mo hás-de dar? E ela disse-me, assim a frio, que eu já lhe devia um euro! Que tivesse paciência!
— Ó Lurdinhas, eu paciência, tenho, filha, mas dá-me lá o donut!”, insisti  eu.
“Que não, e que não e que não!” Isto compreende-se? De um dia para o outro, pronto! Já não há donut para mim! Eu sou uma pessoa de hábitos! Já tenho uma certa idade! Exijo respeitinho!
Bem, voltei-me, e fui à mesa, pedir à minha amiga um euro para a rapariga. E disse-lhe:
— Toma lá o euro, mulher!
E enfiei-lho pela goela abaixo. Ih! Que pandemónio! Até tiveram que chamar a ambulância. Parece que a rapariga tem digestões difíceis. Aqui para nós que ninguém nos ouve, deve ter pensado que a moeda era para comer! Bem! Um engano qualquer pessoa tem!
O que mais me preocupa é que, certamente, não vou conseguir recuperar a moeda, para a restituir à minha amiga.   


domingo, 13 de abril de 2014

Mais leve

Já só me faltava receber a encarregada de educação da Raquel, uma adolescente problemática, amiga de chamar a atenção, quezilenta e arrogante. Desaproveitava as grandes capacidades que possuía, para ser a líder dos alunos malcomportados. Inteligentíssima, era perita na arte da argumentação, entrando em duelos verbais com os professores dos quais frequentemente saía vencedora, o que reforçava a sua posição entre os seus colegas. Apesar disso, o seu aproveitamento escolar nunca estivera em risco.
Quando levantei o olhar da papelada, não vi a mãe da Raquel, mas um homem.
Apressou-se a estender-me a mão, apresentou-se como sendo o pai da Raquel, explicando que a mãe, a encarregada de educação, tinha ido de visita aos pais nos Açores, levando consigo a filha mais nova, enquanto ele ficara com a mais velha.
Arrepiei-me quando o vi. Se ainda tivesse dúvidas, elas desapareceram à medida que ele ia falando. Todavia, não detetei qualquer indício de me ter reconhecido. Falava do assunto da Raquel com a preocupação natural de quem tem uma filha adolescente problemática a tentar concentrar sobre si todas as atenções. Ouvira a leitura das participações dos professores, que eu lhe lera com voz trémula, e prometeu que iria conversar com ela. Recebeu fleumaticamente, pareceu-me, as notas da filha, assinou todas as fichas e demais papelada que eu lhe apresentei, dobrou ao meio a folha da avaliação com um vinco, e guardou-a no bolso interior do casaco. Era mais velho do que eu oito anos. Porém, estava bastante envelhecido, e a diferença de idades parecia muito maior. Continuava magro, com sempre fora, mas parecia arrastar consigo todo o peso do mundo. A mesma voz rouca e sensual que tanto me perturbara, deixava-me agora indiferente.
Em tempos as nossas vidas tocaram-se profundamente, numa roda de violência, paixão, perdão, gritos, choros, equimoses no corpo e na alma.
Eu fora obrigada a fugir, deixando para trás o meu emprego, e acabara por aceitar um lugar de professora no Algarve. Soube que me procurara junto dos meus pais, que o avisaram que me deixasse em paz se não queria estragar a vida dele e a deles.
A última vez que me chegaram notícias, através da amiga comum que nos apresentara, já eu estava casada com um amigo de infância, os meus três filhos já tinham nascido e eu tinha regressado ao Norte. E era feliz.
Ele preparava-se para casar com a mãe das duas filhas, numa altura em que a maior parte dos amigos da sua geração estavam a começar a ser avós. Dissera à nossa amiga “ que já era tempo de assentar.” Só depois do nascimento da filha mais nova lhe parecera oportuno assentar. Recordo o sentimento de piedade que então me invadiu quando soube daquela notícia. Piedade pela mulher, pois segundo vários tratados que então lera sobre violência doméstica no lar e no namoro, um agressor dificilmente deixará de o ser, pois qualquer situação que desequilibre o seu quotidiano, poderá despertar a fera adormecida.
E agora ela ali estava, na minha frente, ainda com o poder de me deixar nervosa e receosa. Ganhei alento, afirmando para mim própria, com a convicção possível, que aquele farrapo não poderia voltar a fazer-me mal. Tinha chegado o momento de resolver aquele assunto pendente na minha vida, para que os pesadelos deixassem, de uma vez por todas, de me atormentar. Necessitava de largar aquele fardo para prosseguir a minha caminhada com mais leveza.
— E por agora é tudo! — concluí, estendendo-lhe a mão.
Nesse momento olhei-o bem de frente, e arrisquei, tentando demonstrar uma segurança que estava muito longe de sentir.
 — Já esqueci tudo e já perdoei. Siga a sua vida em paz.
Ele correspondeu ao aperto de mão, suportando o meu olhar sem pestanejar. Nada disse. Acompanhei-o à porta da sala. Fiquei a vê-lo afastar-se, as costas curvadas, um ligeiro arrastar da perna direita.
Quando chegou ao cimo das escadas que o conduziriam ao piso inferior, voltou-se. Nos seus olhos pareceu-me ver a humidade brilhante deixada pelo assalto de alguma lágrima. A sua boca mexeu-se, sem que qualquer som dela saísse. Mas eu pude ler o que ela dizia:
 — Obrigado!
Voltou-se e lentamente foi-se apagando do meu campo de visão, à medida que ia sendo engolido pelas escadas.
A Raquel já não acabou o terceiro período na escola. Foi transferida para os Açores.