"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

O sapo e a cotovia

Na minha mente cruzam-se excertos de narrativas de infância que se enredam e enovelam umas nas outras, e me assaltam constantemente, tantas vezes às horas e nas situações mais indiscretas. Vou adiando o confronto, por uma tendência inata para a procrastinação, uma preguiça que se vai instalando, e à qual não tenho forças para resistir. Quando finalmente cedo ao apelo e me sento para escrever, é porque uma dessas vozes se sobrepôs, e sei que me basta puxar o fio desse novelinho para a narrativa se ir desensarilhando… A voz que agora sobrevém das brumas da memória é a da minha tia-avó materna, que vivia connosco, terna figura indissociável da minha infância, que disseminou o meu mundo e o dos meus irmãos, de narrativas e de sonhos… Ouço a sua voz, contando a fábula da cotovia e do sapo. Nunca encontrei esta fábula em nenhum livro, e nunca a ouvi contar a ninguém. Nem sei se a reconheceria escrita, ou até narrada por outrem, de tal maneira a voz da minha tia, imitando e mimando as personagens se tornou parte integrante do corpo da história, sem a qual ela estará, para mim, mutilada.
Ó tia, conte lá a do sapo e da cotovia! pedíamos
Era uma vez um gato-montês…Queres que te conte outra vez?
Oh! Não! A do sapo e da cotovia! Vá lá!
Era uma vez um sapo e uma cotovia. Eram casados, e um dia foram fazer um passeio. Mas foram apanhados por uma tempestade, que durou três dias e tiveram que ficar abrigados numa árvore. (A voz dramática da tia, os seus gestos, os seus olhares, criavam o ambiente indispensável à visualização da história) Finalmente a tempestade parou e eles resolveram voltar para casa. Tinha chovido muito, os campos estavam alagados, as ribeiras e os riachos levavam muita água. E lá vão os dois, o sapo ( e aqui a voz da minha tia, ao pronunciar a palavra “sapo” faz a voz grossa, enche as bochechas de ar, e sopra as sílabas “ sa-po”, ao mesmo tempo que baloiça o corpo com a sílaba “sa-” para a esquerda, e com a “-po “ para a direita. Afasta os braços, e faz com eles uma roda larga à volta do seu corpo. Sem mais explicações, a personagem estava instalada à nossa frente, que víamos um sapo gordo, pesado, bonacheirão…) e a cotovia ( neste  ponto afina a voz como uma flauta, e dá pulinhos na cadeira. É uma cotovia leve e saltitante que os nossos olhos veem. E estes gestos irão acompanhar toda a narrativa, alternando-os à media que intervêm uma ou outra personagem.) Chegam à beira do riacho que têm que atravessar, porque a casa deles é do outro lado. Mas o riacho, que quando passaram para cá tinha pouca água, agora vai cheio. A cotovia, sempre a saltitar, a saltitar, levanta voo, e, num instante, está do outro lado. Mas o sapo… olha para a água, olha para lá do riacho, e não se decide a passar. A cotovia, do lado de lá, começa a encorajar o homem dela.
— Passa, sapo, passa! E a voz aflautada da minha tia que imita a cotovia, com os gestos respetivos, e os pulinhos na cadeira, recriam a narrativa.
 — Num posso! Num posso! — responde o sapo.
A cotovia começa a voar em redor do sapo, ora voando para lá, ora vindo colocar-se ao lado do seu companheiro.
— Passa, sapo, passa!
Bem, estão nisto algum tempo, passa, passa, num posso, num posso, até que o sapo, com todas as cautelas, lá se decide. Mas com tanto azar, que quando mete a pata, ela lhe escorrega, e ele vira-se, ficando de patas para o ar a estrebuchar no meio da água. E a corrente arrasta-o pelo riacho abaixo. A cotovia, ao ver aquilo, desabafa, aflita e chorosa:
— Ai sapo, que fico viúva!
Resposta do sapo:
— E dum belo rapaz, tocador de viola!

Ao ouvirmos esta história não conseguíamos conter as gargalhadas, e a pena que a sorte do pobre sapo nos pudesse despertar, era desviada pela imagem patética que conseguíamos visualizar, do sapo gordo de patas no ar, a responder ao choro da cotovia, com a voz soprada, grossa e compassada, que a tia lhe emprestava.