"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

domingo, 14 de julho de 2013

O bicho não estava mau...

A história que vos vou contar aconteceu mesmo. Aconteceu comigo, era eu um rapazito, acabadinho de fazer exame, e com distinção, se quereis saber. Nunca a contei a ninguém a não ser à minha mãe que Deus tem. E foi ela quem me aconselhou a manter o bico calado. Durante estes anos todos esta história coabitou comigo, e marcou a minha vida. Procurei esquecê-la, afogá-la no fundo da memória, mas parece que quanto mais me esforçava para a esquecer, mais ela procurava um escape, e parecia crescer como massa que se põe a levedar. Muitas foram as noites em que estas recordações assombraram o meu sono, e os pesadelos que me assaltavam, aterrorizaram a minha juventude. Quando deixei de lutar contra as memórias, também as minhas noites serenaram, e deixei de ter medo que eles viessem atrás de mim. Se tivessem essa intenção, tê-lo-iam feito logo, enquanto eu era pequeno, sem ninguém que me defendesse, mas nunca me aborreceram nem falaram no assunto. Sabiam, certamente, que o terror de alguma represália me manteria calado. Já passaram muitos anos. De todos os que participaram nesta história só eu estou vivo…Já não há perigo, nem para mim, nem para eles. Todos eles já prestaram contas ao Criador, e alguns deles, senão todos, Deus me perdoe, estarão a arder nas profundezas do inferno. Calma, não me apressem, eu sei que já não corro perigo, mas ainda sinto um arrepio na espinha, ao lembrar-me…Sei bem que não há motivos para isso, mas…foram muitos anos, a guardar este segredo. E se hoje me atrevo a desvendá-lo, foi porque andei muito tempo a matutar nisso…a convencer-me, a ganhar coragem…Não, não estou a exagerar, acreditem no que vos digo…E, apesar dos anos, não me esqueci de nenhum pormenor. Parece que, quanto mais o tempo passa, mais eles se avivam na minha memória.
O velho pegou no copo de vinho, olhou em volta, e emborcou-o de uma só vez. O som do líquido a escorrer pela goela, enquanto a maçã-de-adão subia e descia, era o único som que se ouvia. Sobre a mesa redonda, as garrafas de vinho, algumas já vazias, os copos tingidos de roxo, a assadeira de barro onde ainda ardia o baraço da chouriça, a broa de milho já no fim, eram fracamente alumiados pela luz bruxuleante do candeeiro de petróleo. O fumo dos cigarros serpenteava em volutas caprichosas. As sombras iam crescendo como um balão que se enche, ocupavam todos os recantos da loja, agigantavam-se ao redor dos quatro homens. O professor, o Joaquim da venda e o Leonel boticário não despregavam os olhos do velho Mateus.Com aquela introdução Mateus havia conseguido captar a atenção de todos eles. Todas as quartas-feiras eles se juntavam na loja do Joaquim, depois do expediente, para contarem as suas histórias ou debaterem algum tema de interesse. Joaquim fechava a porta da mercearia mal o sino da torre batia as sete badaladas, e eles ajeitavam-se para ali passarem o serão. As mulheres sabiam que naquele dia escusavam de esperar os maridos para jantar. Só a Mateus ninguém o esperava. Era o único idoso e o único que nunca casara, muito embora se lhe conhecessem algumas inclinações amorosas nunca assumidas nem por ele, nem por elas. Nesta quarta-feira, era a sua vez de iniciar a reunião contando uma história.
Na braseira enlanguesciam as brasas, que o professor ia atiçando nervosamente.
Mateus continuava: Pois quando fiz o exame, a minha saudosa mãe foi pedir ao almocreve Pero Piçarro, para me levar com ele e o seu bando, para eu ir aprendendo o ofício. Os almocreves naquele tempo ganhavam muito dinheiro, e, se bem que estivessem sempre sujeitos a assaltos dos amigos do alheio, a fama e a experiência que Piçarro havia consolidado, deixavam a minha mãe tranquila. E num dia combinado, eu lá parti com a caravana deles. Os homens iam todos montados nas suas mulas e machos, e dos alforges de couro ensebado sobressaiam as coronhas das espingardas. Nem parecia que partiam por quase um mês, tal era a boa-disposição que os animava. Contavam graçolas, cantavam, riam-se. Eu ia sentado na carroça das mercadorias, amuado e envergonhado por me terem visto agarrado à minha mãe, soluçando desalmadamente, perante a perspetiva da separação. Nunca a tinha deixado, e ela sempre me acarinhou, quem sabe se também para me compensar da falta de pai, que, como sabem, não conheci. Um deles, o Zé Manco, meteu-se comigo por eu ir choroso e abatido como uma menina, e eu ia ressentido com ele… Mas lá íamos progredindo vagarosamente pelas estreitas veredas, o corpo sujeito aos solavancos que os acidentes do caminho comandavam. Estávamos quase a chegar à Malhada das Vacas, quando me apercebi que eles se tinham calado. Espreitei, e vi que tinham parado, e tirado os chapéus. Parecia que estavam a rezar. E não é que estavam mesmo? Dois ou três minutos depois, benzeram-se, puseram os chapéus, levantaram a cabeça, e retomaram o caminho. E o que eu percebi, é que estavam zangados…Um deles, de quem já me esqueci do nome, falava muito alto, e dizia que o havia de varar com dois tiros no meio dos cornos, como ele tinha feito ao Almiro Pardo, e ela havia de ter a mesma sorte…Só mais tarde percebi de quem falavam, quando contei à minha mãe e ela me convenceu a ficar calado para o resto da minha vida. Já vai, já vai…não tenham pressa, já lá chego…
O Pero Piçarro, que era o chefe do grupo, censurou-o, disse-lhe que tivesse calma, que ele fervia em pouca água, que a vingança era um prato que se servia frio…
Andámos aí uns cem metros, quando o Ramires Murtinheira, que mal tinha falado, disse:
 — Pois então, Piçarro, espero que o prato esteja bem frio, porque o alarve está a caminhar para as tuas mãos.
No caminho de baixo avistava-se um cavaleiro. Obrigatoriamente, ele tinha que passar pelo mesmo caminho que seguíamos.
— Aí está a resposta às minhas orações — murmurou o que chamavam de Padre.
Imediatamente os homens saltaram das montadas, conduziram os animais e a carroça para fora do caminho, e pegaram nas armas. Agacharam-se atrás das moitas, e esperaram, silenciosamente. Não tardou muito que se não aproximasse uma mula ruça, em cima da qual se sustinha um homem que eu conhecia, mas de quem não sabia o nome. Avançavam lentamente. O homem, grande e pesado, com o chapéu descaído para os olhos, parecia dormitar; a mula, derreada sob aquele peso exagerado parecia ainda mais velha, e, tanto montada como cavaleiro, vinham cobertos de pó e aparentavam um grande cansaço. Mal ele chegou perto, os meus companheiros saíram dos esconderijos, e apareceram-lhe à frente, de espingardas apontadas.
— Lembras-te do que fizeste aqui ao Almiro Pardo?— perguntou o Pero Piçarro.
O homem teve um sobressalto, e agilmente lançou mão da sua arma, com uma destreza imprevisível para alguém com aquela compleição anafada.
— Eu se fosse a ti, nem sequer tentava. Já contaste as armas que tens apontadas às trombas?
Nunca me esqueci do ar apavorado que cobriu o homem! Tenho a certeza que ele soube que ia morrer.
— Lembras-te, ou já te esqueceste?
 — Lem…lembro…
 — E tens alguma coisa a dizer em tua defesa?
— Eu…ele…ele batia-lhe, e…
— E se batia, era lá com ele…entre marido e mulher não metas a colher! — interrompeu o Laginha.
 — Se é só isso que tens a dizer, faz as tuas  orações…Embora tenha a certeza de que te não vão servir para nada…há de ser o mafarrico quem vai tratar da tua alma, se a tiveres — avisou o Padre.
Estas observações foram recebidas com gargalhadas por todos, exceto pelo cavaleiro, que estava pálido, e tremia. Na poeira das calças começou a alastrar uma mancha escura.
Eu estava aterrado, escondido atrás da moita, mas sem conseguir desviar o olhar. O bando parecia ter-se esquecido da minha presença. Lembro-me de que comecei a rezar, eu também. De repente, uma metralhada de tiros fere os ares, quase em uníssono. Fechei os olhos com força, e cravei as unhas nas palmas das mãos. Ouço então um baque surdo, pesado, como se um saco de batatas escorregasse até ao chão, ao mesmo tempo que me entra pelas narinas o cheiro a pólvora misturado com poeira. Logo a seguir, a voz de Zé Manco, à qual se associam as gargalhadas dos companheiros:
 — O bicho não estava mau!
É neste momento que eu desato a correr, a correr, a correr, e só paro em casa.
Mateus parece despertar. A história que acabou de narrar deixou-o sem forças. Contou quase como se estivesse sozinho, sem fitar os seus ouvintes. Só agora volta a passear o olhar pelos companheiros, que não se atrevem a falar.
Quando cheguei a casa, eu quase desmaiava de pavor e exaustão. Depois de beber um beirito de água que a minha mãe colocou à minha frente, e me ter acalmado, contei-lhe aquilo a que assistira. Notei que ela ficou muito aflita e pediu-me que esquecesse aquela história. Devia fazer de conta que nunca tinha acontecido, e que desconhecia completamente aquele assunto. Pois foi isso que eu fiz, professor, até agora. Mas antes eu quis saber quem era o tal Almiro Pardo. Lembro-me que a minha mãe ficou perturbada, respirou fundo, e explicou-me que esse Almiro fazia parte do grupo dos almocreves do Pero Piçarro. Fora assassinado perto da Malhada, e constava que o Abel da Várzea o tinha matado para lhe ficar com a mulher, mas não havia provas. Pois dizes bem, Joaquim, foi um ajuste contas! Qual quê ! O corpo nunca foi encontrado, e eles trataram de espalhar o boato de que ele teria fugido para o Brasil! Eu ia lá abrir a boca, professor! Quem tem cu tem medo! A minha santa mãe fez-me jurar, pela bíblia sagrada, que nunca diria nada! E o prometido é devido.
— Pois então, bebamos mais um copo! — propôs o Joaquim.
O vinho rodou pelos copos de todos. A voz de Mateus continuou ainda a ressoar depois de se ter calado.No ar sentia-se um ambiente pesado, como se a evocação daquela história tivesse convocado as almas dos seus intervenientes. E nessa noite, depois da rodada,os quatro companheiros da venda  foram desertando, sem quererem saber de mais conversa.