"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

terça-feira, 9 de julho de 2013

O Castigo

António passeava-se pela sua vinha, orgulhoso. Aquela vinha era a luz dos seus olhos. Ele bem via os olhares cobiçosos que os outros camponeses lançavam aos cachos negros, redondos, carnudos… Cuidara dela com desvelo, vira-a brotar da terra, vira-a crescer, vira-a tornar-se frondosa. Vigiara dia-a-dia as videiras, combatera as pragas e as doenças…Mas fora abençoado. O vinho prometia…
Já lá iam cinco anos que ele e o cunhado tinham tomado de renda a quinta do sr. Manuel da Ponte. Entenderam-se com o ricaço, e dividiram a terra ao meio, tomando cada um conta da sua parte. Era uma terra farta, abastada de água, e devolvia-lhes a dedicação, presenteando-os com os frutos que agasalhava no seu seio. Também a irmã e o cunhado se mostravam satisfeitos e igualmente gratos pela terra fértil. Amavam a terra e não fugiam ao trabalho. Se bem que a irmã, depois da última gravidez, não fosse mais a mesma. Andava esquisita, e tristonha…Coitada! Seis pimpolhos, todos seguidos, era uma carga de trabalhos…Os miúdos eram saudáveis, e lá se iam criando…O mais velho até já ia ajudando o pai, porque a irmã, ultimamente…pouco prestava para o duro trabalho do campo. Sempre fora uma mulher trabalhadeira, mas agora… Puxava-lhe para a cama, ficava a olhar o vazio, macambúzia, queixava-se de grandes dores de cabeça, de não ter forças para nada… Quantas vezes Inácio, o marido, fora apanhá-la de enxada na mão, parada, e tivera ele de acabar o trabalho que lhe estava a ela destinado. A Delmira, a sua mulher, já por mais de uma vez fora buscar as crianças para comeram com eles. Ele não se importava. Gostava dos sobrinhos. Eram todos família, e quando as coisas não corriam pelo melhor, para onde é que uma pessoa se havia de virar senão para a família? Sopa nunca faltara na mesa. E aquilo havia de passar. A Delmira e a Clotilde lá se entendiam. A mulher pouco abria o jogo, mas ainda foi dizendo que a irmã andava cismada, que se levantava de noite, que ouvia chamarem por ela…Não ligara muito… Coisas de mulheres, decerto…
António deu a volta à vinha, sentindo crescer dentro de si um misto de amor, orgulho e gratidão. Subitamente deteve-se. Alguém lhe andava a roubar os cachos! Olá!..não se tratava de debicar um bago aqui ou ali, mas de cortar cachos e cachos inteiros. Ah! Iria apanhar o bandido, ou não se chamasse António Justo!...
 Na noite a seguir a esta descoberta, armou-se de um varapau e pôs-se à coca, pensando apanhar o ladrão com a boca na botija. Mas a dor que se lhe ferrara nas cruzes, depressa o demoveu da vigília. António magicou, magicou, à procura de uma solução, até que teve um rasgo de iluminação. O ladrão iria pôr-se a descoberto, vítima da sua própria gula.
Foi à arrecadação onde guardava as alfaias, os tratamentos das vinhas, os produtos de limpeza e desinfeção das cubas. Retirou o frasco da prateleira onde guardava o ácido tartárico. Desta vez, o ácido iria servir para pregar uma valente partida ao ladrão das uvas. O malandro iria dali sair com as calças na mão. Ou nem sairia… A disenteria que o ácido lhe ia provocar, não o deixaria ir muito longe. António sorriu para dentro. Com um balde na mão, a solução preparada e uma trincha, partiu para a vinha.
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Os sinos dobravam a finados. Ao aproximar-se a hora, houve alguma agitação na sala. O terço interrompeu-se, quando os gritos da ti Laurentina, vestida de preto dos pés à cabeça, atravessaram o compartimento. A mulher debruçou-se sobre o caixão e abraçou o cadáver magro, chupado de carnes, enquanto gritava:
 — Ai minha filha, minha rica filha, que tão cedo me deixaste! O que vai ser destes meninos?...
Duas mulheres acudiram de imediato, na tentativa vã de a acalmarem. Os gritos continuaram, como pano de fundo.
Inácio arrastou-se para junto do caixão, pegou nos filhos, um por um, para que se despedissem da mãe. A dor estava-lhe estampada no rosto, no porte derrotado. Depois inclinou-se sobre o cadáver, depositando um beijo, o último beijo, sobre os lábios pálidos e sem vida da mulher. A pele seca e encarquilhada de Clotilde, denunciava a desidratação extrema provocada pela diarreia que o médico não foi capaz de conter. Quando, após a prédica fúnebre do padre, a urna foi fechada, do fundo da sala explodiram os soluços ruidosos e descontrolados de António, como se o rastilho incendiado se tivesse esgotado.
Muitos se interrogaram por que pedira ele desculpas à irmã, mas o que a todos impressionou, e ninguém suspeitava, era que ele gostasse tanto dela.