"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

terça-feira, 30 de abril de 2013

Ninhos


Acordo sobressaltada com os gritos das crianças. Tateio o interruptor, mas não há luz. Salto da cama. A sombra da cerejeira agiganta-se, ameaçadora, na parede do meu quarto. Às apalpadelas vou avançando pelo corredor, tão depressa quanto a escuridão me permite. A sapateira aparece-me à frente, barra-me o caminho, e eu dobro-me instintivamente pela cintura, enquanto um grito de dor se me escapa por entre os lábios. Contorno o móvel e avanço. Os gritos das crianças são mais urgentes, e denunciam terror. Grito-lhes, tentando acalmá-los. O meu filho mais velho costuma ter pesadelos que me obrigam a ir ter com ele, abraçá-lo e acordá-lo. Mas agora, o meu coração diz-me que não pode ser um pesadelo. Os gritos são de ambos, e vêm do quarto deles.
— A mamã está a ir! Calma!
É então que ouço três golpes surdos, e, logo a seguir, os gritos das crianças param. Começo a ouvir gritos descontrolados, e só alguns momentos depois me apercebo que sou eu quem assim grita. Passos pesados afastam-se em direção ao jardim. A janela ao fundo do corredor está aberta, e as cortinas esvoaçam ao vento. Um urro de pânico sai-me do peito.
— Nãaaaaaaaaaaaaao!
O meu coração galopa desenfreadamente. Sinto as lágrimas quentes rolarem-me pela cara. Os soluços engasgam-me e uma dor atroz no peito mal me deixa respirar. Parece que nunca mais alcanço o quarto das crianças. Um outro urro sai-me da garganta e eu ouço-o claramente a fazer eco dentro do meu peito.
Olho à minha volta, sem perceber onde estou. São precisos alguns segundos para reconhecer a familiar e tranquila atmosfera do meu quarto. A pouco e pouco acalmo-me. Verifico as horas no telemóvel. Dez e vinte! O Eduardo há muito que se levantara. Que disparate! Porque dormira eu até tão tarde? Acordara por volta das quatro e meia para urinar, estivera bastante tempo acordada, acabara por adormecer e ter aquele pesadelo absurdo! Tenho que telefonar ao Hugo e ao Sebastião. Preciso de me certificar de que estão bem. Claro que nem lhes vou falar naquele pesadelo tonto!
Desço as escadas, tão incomodada como aliviada. Começo a preparar o meu pequeno-almoço. O ruído que me chega do terraço atrai a minha atenção para a janela da cozinha. Vejo um jovem desconhecido, a segurar um volume de telhas preso por um cordel. Só então me lembro de que hoje vinham mudar o telhado. Chove nos quartos dos garotos, e, como não fomos previdentes ao ponto de termos guardado algumas telhas quando construímos a casa, temos que substituir todo o telhado. As fábricas de telhas ganham um dinheirão com pessoas incautas. Devia ser proibido mudarem o encaixe das telhas. Por meia dúzia de telhas, as pessoas são obrigadas a substituírem todo o telhado. Antigamente, um telhado era para uma vida…Agora, tudo é efémero!
Aproximo-me mais da janela. De repente, os meus olhos poisam aterrados, num espetáculo indescritível! O chão do terraço está pejado de destroços de ninhos, e ovos esmagados lambuzam as palhas e as penas dos escombros, que ainda mantêm o seu formato. Uma onda de uma raiva imensa começa a inundar-me. Sinto um calor no rosto, e, por momentos fiquei literalmente cega. Abro a porta da cozinha, corro para fora, a gritar:
 — Assassinos! Que é que fizeram? Assassinos! Assassinos!
O meu marido surge à esquina da casa, fita-me alarmado, com um ar estranho, e agarra-me. Eu debato-me, com os punhos cerrados, e continuo a gritar:
 — Assassinos! Assassinos! Assassinos!
Ao mesmo tempo que Eduardo grita o meu nome, dá-me duas bofetadas. Eu desato a soluçar convulsivamente. Consigo vislumbrar o ar dos trabalhadores que, entretanto, acorreram, paralisados pela surpresa. Eduardo conduz-me para dentro de casa. Deita-me no sofá, enquanto eu descarrego a minha dor. Não tem palavras de conforto para mim. Cobre-me com a manta do sofá, e deixa-me só. Acabo por adormecer de exaustão. Quando acordo, são quatro horas da tarde.
O meu marido está lá fora, sentado no terraço, com uma cerveja na mão. Conheço bem aquela sua pose. As asas do nariz oscilam ritmicamente. Está zangado, muito zangado. No terraço já não há vestígios dos ninhos. Aproximo-me. Calmamente, pergunto:
 — Porque destruíram os ninhos?
Eduardo poisa a garrafa que segurava  na mão. Olha para mim, com um ar acusador:
— Estás ciente do ridículo a que me expuseste?
 — Os ninhos…Porque destruíram os ninhos?
 — Sónia!...O que é que se passou aqui?
— Isso pergunto eu! Destruíram os ninhos, os ovos dos pássaros!...Eles confiaram em nós! Sabiam que podiam vir todas as primaveras, construir aqui os seus ninhos e as suas famílias, que estavam protegidos! E agora…
 — Mas o que é que tu querias? Acorda, mulher! Era preciso mexer nos ninhos, para mudar o telhado! Os ninhos estavam por debaixo das telhas! Não tenho culpa que os trabalhadores destruíssem os ovos! Mas, de qualquer maneira, os pássaros iam enjeitar os ovos, depois de lhes terem tocado! O que me preocupa…
Eduardo respirou fundo, focou qualquer ponto distante à sua frente. E continuou:
— O que me preocupa, é a tua reação inexplicável! Parecias louca, ouviste? Louca! Uma reação completamente desajustada à situação! Tive que mandar os homens embora! Deves-me uma explicação!
Suspirei. Cansada. Triste. Apercebi-me de que ele tinha razão.
 — Desculpa. Mas agora… não posso. Talvez…quando estiveres disposto a ouvir-me sem essa raiva…sem me julgares… Quando estiveres disponível para me ouvires e te libertares dessa impressão de que te coloquei mal perante os outros…neste momento…os outros são quem menos me interessa. Estou muito cansada.
Avancei para o meu quarto. Bebi um copo de água. Deitei-me. Não queria ouvir nada. Não queria pensar em nada. Mas continuava a pensar nos pobres pássaros, que viram a sua família destruída. Haviam de querer voltar para os seus ninhos, chocar os ovos, e não havia ninhos, nem ovos…Esta primavera não haverá pássaros no meu jardim…E não sei se haverá nas primaveras mais  próximas. Como se terão sentido eles, ao assistirem impotentes à destruição dos seus lares, os ninhos, ao massacre dos seus filhos potenciais!
Foi então que me lembrei do sonho! Já o tinha esquecido!
Levantei-me de novo, e desci ao jardim, onde Eduardo continuava sentado no mesmo sítio onde o havia deixado.
— Eduardo, quero contar-te uma coisa. Um sonho. Ou melhor: um pesadelo que tive esta madrugada.
Eduardo ouviu-me, sem uma palavra, sem um comentário. Quando terminei, ele abriu-me os braços, acolhedores. Sentei-me no seu colo. Abraçou-me, longamente. Aninhei-me nos seus braços, e ele beijou-me os cabelos. Ficámos assim, sem falar, durante alguns minutos. Finalmente, ele perguntou:
— Não tens fome?