"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

terça-feira, 26 de março de 2013

A Concertina




Na casa do ti João era uma verdadeira animação. Do nascer ao pôr-do-sol, não havia lugar para tristezas. Não que a ele lhe faltassem motivos para andar mais macambúzio um dia ou outro, com acontecia a qualquer mortal, mas o ti João, quando algo o atormentava, agarrava-se à sua concertina, tocava, tocava, tocava, e até as pedras  despertavam…Era o animador de festas, casamentos  e romarias das redondezas…Festa onde estivesse o João da concertina, era diversão assegurada…
A mulher acompanhava-o a mais das vezes nas suas rondas, cantando e  dançando  as modinhas que o seu João tirava daquele instrumento, encorajando os mais tímidos a participarem no arraial, dando  o seu pezinho de dança….
Não havia na aldeia onde nasceram e viviam casal mais alegre … Criaram os filhos, ao som da concertina, e os males sempre lhes pareciam apoucados, debaixo do ritmo daquelas pitorescas melodias.
Mas, como não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe, a passagem do tempo trouxe com ele a velhice, o desgaste natural…O ti João, já entrado em idade, apercebeu-se que a sua hora de prestar contas a Deus se aproximava… Então teve uma conversa com a mulher:
— Olha, Maria, tu foste sempre uma boa companheira… Mas eu, já cá não vou andar muito tempo…Por isso, quero pedir-te…Sabes como a concertina fez parte da nossa vida…Era o nosso divertimento…Tu não sabes tocar… e eu…talvez ainda dê alguns acordes lá no sítio para onde vou…Tu que dizes?
— Tu queres levar a concertina, não é, homem?                                               
— Pois queria…se te não importas…se não te fizer falta…
— Mais do que a concertina, quem me vai fazer falta és tu, homem de Deus…— disse a ti Maria, com a lágrima a espreitar-lhe no canto do olho…
O ti João não sobreviveu muitos mais dias a esta conversa. E a concertina lá foi ajeitada no caixão, como tinha pedido o moribundo. E, de entre o choro das carpideiras sobressaíam os gritos da Ti Maria, numa dor tão pública, tão genuína, tão desvairada:
— Ai meu rico homem! Homem da minha alma, que levas o nosso divertimento entre as pernas!
Só quem não os conhecesse poderia fazer juízos injustos perante a manifestação de tão sentida separação.