"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Mãe de carne e osso...

A mãe estava linda. Tinha um chapéu de palha azul-escuro, com fios de ráfia coloridos, que passavam por cima da copa e da aba do chapéu. O vestido cor-de-rosa tinha umas flores acetinadas em relevo, e a saia cingida ao corpo. À volta do pescoço, um colar com umas contas coloridas de formato irregular. E ela, soerguida sobre a areia, com as pernas nuas e os pés descalços, parecia fazer pose para uma fotografia. Lurdes sentia orgulho na sua mãe, de tão linda que estava. Naquele momento, não devia nada, absolutamente nada, à beleza e ao bom gosto da Chinha. Olhava à sua volta. Nenhuma mulher, mas mesmo nenhuma, estava tão bela quanto a sua mãe. Havia mulheres de bata a tomar banho pela mão do banheiro, entre as quais estava incluída a avó. Outras de saias, vestidos franzidos e coloridos, e ainda outras, bastantes, de fatos de banho, alguns com uma saiinha pequenina sobre as coxas, outros, só com pedaço de tecido à frente. Enfim, mulheres vulgarmente vestidas. Mas a sua mãe parecia ter saído de uma revista. Uma mulher linda de morrer, como as de papel. Por isso, não percebeu a razão pela qual, ao fim do dia, de regresso à casa alugada, a mãe declarara, numa voz que ela tão bem conhecia e que anunciava o desencadear de uma violenta tempestade, que ao outro dia ficaria em casa. Ouvira depois o pai, também nervoso, dizer à avó que ele é que sabia, que ela não tinha nada que se meter, que os tempos eram outros, e que pecado era roubar. 
E, ao outro dia, o longo percurso em direcção à praia fora feito apenas por Lurdes, os irmãos, e a avó de lábios cerrados a comandar a caminhada. Lurdes nem se atrevera a fazer perguntas. Reconhecia os indícios da tempestade e já sabia que era melhor nada perguntar. Mais tarde, bastante mais tarde, chegariam os pais. A mãe vinha despojada das jóias que no dia anterior a tinham enfeitado. Reconheceu-lhe o vestido simples, que ela própria tinha confeccionado, assertoado à frente por uma fieira de botões, e que ela já usara várias vezes. O pai entrou na barraca com um volume debaixo do braço, e saiu envergando uns calções de banho pretos, de malha elástica. Estava com uma ar bem-disposto e divertido, pouco habitual nele no dia-a-dia. No meio da barriga proeminente, uma clareira de pele branca, contrastava com a restante mancha serrada de pelos negros. A mãe tinha-se sentado à frente da barraca, a levantar montinhos de areia e a deixá-los escorregar por entre os dedos. Lurdes e os irmãos faziam covas na areia, com a ajuda das suas próprias mãos.
O pai dirigiu-se à mãe:
 — Então? Vai lá!
— Espera! Estou a ganhar coragem! Primeiro os miúdos!
Foi então que o pai se dirigiu à barraca e saiu de lá com o embrulho que tinha trazido. E foi uma alegria. Três baldes de plástico saíram do embrulho de papel pardo. Um amarelo, um vermelho, e outro verde. E três pás. E foi uma festa. Não houve luta na escolha dos baldes. Cada um chegou-se ao seu, naturalmente. Amarelo para a Lurdes, verde para o António, vermelho para o Gustavo. E, enquanto os garotos davam asas à sua felicidade, a mãe entrou na barraca e saiu, discretamente, com um fato de banho azul vestido. E Lurdes chegou-se junto da mãe, sem dizer nada, e os seus braços rodearam-lhe a cintura. A mãe deu-lhe um beijo no alto da cabeça. A avó olhou, fez um jeito esquisito com a boca, um jeito que Lurdes não gostava nada que ela fizesse, afastou o olhar e concentrou-o lá longe, no mar, durante muito tempo.
Lurdes achou que a sua mãe estava ainda muito mais bonita que no dia anterior. E que era uma mãe de carne e osso, como todas as mulheres naquele extenso areal. E que tudo estava em perfeita harmonia.
E foi uma família feliz que se dirigiu ao banho da tarde, enquanto a avó ficava de guarda aos pertences que estavam no interior da barraca.

De olhos fechados...

Estava desiludida. Sentira-se fora da sua pele, humilhada, ridícula, nessa manhã, na praia. Tantos preparativos, tanta excitação, e não pensara que nem toda a roupa era adequada para levar para o areal. Nem a Chinha, com toda a sua sabedoria, a salvara do ridículo. Também nunca iria saber. Percebera, ao olhar à sua volta, a falta que cometera. Aprende-se com os erros, pois claro! Será que ela, a outra, estava à espera que ela cometesse uma gafe daquela envergadura? Ou terá sido ela a ser demasiado ingénua? Não interessava agora! Era a altura de remediar a falha. Tinha que falar com toda a calma com o marido. Já gastara tanto dinheiro, e agora era preciso gastar mais! Nem lhe iria falar nas contas da D. Maria. Isso era entre as duas. Pagaria com o seu trabalho, pois então! Ela estava sempre a precisar de mãos experientes. E fora sua mestra, sabia muito bem quanto valia o trabalho de uma costureira diplomada, em que ela se tornara quando, após os seus ensinamentos, se candidatara a um curso de corte e costura. Claro que lhe fora fácil obter a certificação, pois não estava a começar do zero. E isso, era à D. Maria que o devia.
Mas aquela Chinha saíra-lhe uma peça! E durante meses ela entregara-se completamente nas suas mãos. “Tens que ter, pelo menos, dois fatos para sair, vestidos para o casino, sapatos a condizer…”
E ela, com receio de que a sua mentora desistisse de a conduzir por aqueles caminhos que exigiam regras de etiqueta tão rígidos, caminhos que ela nunca poderia caminhar sozinha, a tudo ia dizendo que sim. E só depois, em casa, afastada temporariamente daquela influência que lhe sugava o discernimento, caía em si, decidia que não precisava nem podia manter aqueles luxos, e, numa conversa cautelosa, tentava encontrar o meio-termo, “ um fato seria o suficiente, e dois vestidos de noite.”
A Chinha, depois de alardear bem alto, como se estivesse a convencer uma plateia (a plateia era apenas constituída pela Celeste, e, ocasionalmente, os filhos, que, perante aquela gritaria, ocorriam a ver o que se passava), de que não podia fazer má figura, não era nenhuma labrega, o marido iria gostar de a passear bela, bem vestida, iria sentir-se orgulhoso ao ver os olhares cobiçosos dos outros homens pousados na sua mulher, pois que olhassem, porque aquela era a sua mulher e de mais ninguém, era a sua. E colocar-lhe-ia os braços à volta dos ombros, puxá-la-ia contra si, para que todos os homens o admirassem por aquela bela mulher que ele passeava, a sua! Acredita, menina, os homens gostam disso… ora, filha, a minha sogra certamente não vai querer que tu pagues tudo de uma vez…vais pagando, querida, vais pagando…até com o teu trabalho…tal como tens feito até agora… as bainhas, chulear, alinhavar, pespontar, passar a ferro…é uma oportunidade única, menina, aproveita!... Vais ver que vais ter o teu maridinho caidinho por ti…não vai resistir…nunca mais vai ter olhos para nenhuma outra…
E a “menina” lá se convencia que aquela causa valia alguns sacrifícios. Afinal, nunca tinha saído dali…Merecia apresentar-se em grande na primeira saída daquele buraco situado lá no fim do mundo… Ele conhecia outra gente, outros mundos, por imposição do seu trabalho, é certo, mas não ela…tinha que ficar em casa, criar os filhos, que não lhe deixavam tempo para mais nada. Esta saída estava programada e prestes a acontecer. Quem lhe garantia a ela que haveria outras? Era aproveitar, portanto. Em miúda, invejava os ricos que partiam sempre no mês de Agosto para as praias. Era a D. Maria quem lhes tratava de enxoval para a praia, e pelas mãos dela, a aprendiz, passavam todos aqueles tecidos comprados na cidade, que a faziam sonhar, imaginar-se no lugar delas… Se não fosse a Cinha!... Sabia tudo! Lá no Congo vivia em grandes luxos, fazia vida em sociedade, via-se bem, pelas fotografias e pelo guarda-roupa que ela trazia! Sabia lá ela que precisava de roupa específica para ir à praia, outra para a tarde, outra para a noite, para passear no picadeiro, ou para ir ao casino…sabia lá ela, pobre dona de casa ao serviço do marido e dos filhos…ela sabia, isso sim, o que era bonito, sim, sabia, sabia que gostaria de usar aquela roupa, sim…os colares, as pulseiras…os sapatos… mas daí a destrinçar que aquela era adequada para a “matinée”, como dizia a Chinha, aqueloutra para passear, ou para o casino…nunca sequer se dera ao trabalho de pensar nisso…ai se não fosse ela…felizmente que a tinha por perto…tinha que ignorar os mexericos da sogra e da mãe, que constantemente lhe azucrinavam os ouvidos contra a pobre da Chinha, toda pintada e desgargalada, aquilo não eram modos de uma mulher decente!
Era boa rapariga, era sua amiga, e só queria que fizesse boa figura…ponto final! E era tão divertida! As histórias que ela contava…Dos amigos do marido, que andavam babadinhos por ela…Daquele que uma vez, num dos jantares importantes a que eles iam lá no Congo, descalçara os sapatos por debaixo da mesa, e começara, com os pés, a trepar-lhe pelas pernas acima…Credo! Aquilo era indecente! Mas a Chinha ria-se, divertida, dava gargalhadas altas e hilariantes…
Gostava daquele bâton vermelho vivo com que ela pintava os beiços e que lhe fazia sobressair os dentes brancos e bem tratados…ela era muito bonita…Muito morena, (até teria algum ascendente de raça negra), os lábios muito carnudos, os decotes generosos…”O que era bom era para se ver”, tinha ela rematado, com uma boa gargalhada, quando Celeste, timidamente, a sondara sobre esse assunto.
Era uma bela figura de mulher…e muito certa dos seus atractivos e ascendência sobre os homens.
O Leopoldo acabara por arranjar uma boa mulher…melhor do que ela seria… A D. Maria Fontes, ainda andou uns tempos sem quase lhe falar… O meu Leopoldo, dizia ela naquela voz sibilante, melosa e soprada, enrolando as sílabas …o meu Leopoldo, sabes, filha, pediu-me para te perguntar…o que achas tu…Ele gosta muito de ti…e já te conhece desde que nasceste…Que dizes?
 Deu um salto. E a agulha espetou-se-lhe na unha, e caiu uma gota de sangue na bainha do vestido da cliente. Foi uma trabalheira para conseguir limpar a nódoa sem a cliente perceber…O que vale, é que o vestido era estampado, com grandes flores cor-de- rosa, e a mancha que ficou, depois de se ter retirado a nódoa, desvaneceu-se no meio das pétalas das flores.
Mas não esteve com meias palavras. Ele era velho, e tinha os dentes e as unhas amarelos…
Ela tinha dezasseis anos, ele tinha trinta…Sempre fora seu amigo, é certo, a vizinhança, e o facto de ela ter passado grande parte da sua adolescência no salão da mãe, a aprender costura, proporcionaram o convívio e a amizade. E ele sempre fora simpático para ela…agora daí a casarem…E, afinal, ele até tivera sorte, está visto…ela era uma garota da aldeia, mas a Chinha estava preparada para a vida em sociedade, para aqueles bailes, jantaradas e caçadas com gente importante…
Se ela tivesse casado com ele, seria ela a ter aquela vida de princesa, servida por criados, a acordar tarde e a preguiçar toda a manhã, a tomar o pequeno-almoço na cama…E vestiria camisas de noite de seda e cetim, untar-se-ia com cremes para a pele se manter jovem e sedosa, e quando o Leopoldo chegasse para se deitar nos lençóis de cetim... TODO O ENCANTO DESAPARECERIA!