"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

segunda-feira, 18 de junho de 2012

A alma dos contos

Levantou os olhos relutantes do livro em que estava embebida.
— Diga, Dona Eugénia!
— Uma substituição, professora, na sala 21.Sétimo B.
Com um suspiro, ela levantou-se da cadeira, fechou o livro, e colocou-o na prateleira de onde o havia tirado.
— A professora deixou plano?— perguntou.
— Não vejo aqui nada.
Enquanto deixava para trás de si a biblioteca, pensava que era preferível não haver trabalho deixado pela colega que estava a faltar. Assim poderia contar -lhes um dos contos do seu vasto reportório, como costumava fazer sempre que  era solicitada para aquelas aulas e não havia plano. Não era fácil enfrentar uma turma de adolescentes ao último tempo de segunda-feira, das dezassete e quarenta e cinco às dezoito e trinta, na expetativa de que não houvesse professor para fazer substituições. Ela estava na escola desde manhã, e os miúdos também. As aulas de substituição não eram benquistas. Muito menos àquela hora. Conhecia a turma. Tinha sido sua professora no ano letivo anterior. Miúdos irreverentes e desrespeitadores de regras, sem hábitos de trabalho. A adolescência, com todas as alterações que essa fase acarreta, agravara-lhes o comportamento. Todos os professores se queixavam. Individualmente, eram miúdos normais, alguns até amorosos. Mas a força que o grupo conferia a cada um deles, transformava-os numa turma com a qual era difícil trabalhar.
Ao chegar à porta da sala, ouviu gritos, e barulho. Quando a funcionária a viu, desabafou:
— Estão insuportáveis! Malcriados! Não têm educação nenhuma!
Passou-lhe o livro de ponto e saiu. Ela ficou ali, a olhar para eles, sem sequer darem pela sua chegada, ou melhor, a fingirem não a ver. Ninguém estava sentado no seu lugar, conversavam aos gritos uns com os outros, davam altas gargalhadas, alguns estavam sentados em cima das mesas. Ela nada disse. Dirigiu-se à secretária e esperou, de pé, braços cruzados. Alguns foram-se sentando, mas continuavam a fitar os colegas e a rirem-se. Depois de algum tempo, ela bateu com as palmas das mãos na secretária, e disse com voz alta e firme:
— Pouco barulho!
Algum barulho cessou, mas continuava um certo burburinho. Uma das miúdas estava sentada ao fundo, de costas para a janela, e pernas em cima da cadeira da colega. Esta não havia sido sua aluna no ano anterior.
— Sentas-te direita, fazes o favor.
A garota sentou-se direita, olhou-a com o nariz empinado, e disse:
— Está bem!
Ela pediu aos alunos que estavam ao fundo da sala, que viessem ocupar os lugares da frente que estavam vazios. Eles vieram arrastando-se, com má vontade. A rapariga a quem ordenara que se sentasse corretamente, já estava de novo com os pés na cadeira da vizinha.
— Já te disse que te sentasses como deve ser! Não me obrigues a tomar uma medida desagradável!
— Está bem, está bem!— resmungou.
— Menina, respeitinho!
— Mas o que é que eu fiz?— volveu, num tom desafiador
— Dá-me a tua caderneta!
— Não tenho!
— Então tens falta de material! Dá-me o teu caderno diário!
A garota estendeu-lhe uma folha em branco.
— Quero a folha onde tens os sumários, não uma folha em branco.
Escreveu o recado para o Encarregado de Educação, sabendo perfeitamente que mais valia estar quieta, pois aquele recado não iria mudar nada. Em seguida pediu aos alunos que fechassem as persianas e apenas manteve acesa a luz do quadro. Um dos alunos sugeriu:
— Ó professora, vamos buscar o comando, e vamos ver os vídeos para rir!
— Não! Vou contar-vos uma história.
O ar de enfado foi geral. Ela sabia o que eles estavam a pensar. Nos anos anteriores, muitos deles haviam frequentado a Hora do Conto que ela dinamizava, mas durante este ano, nenhum lá pusera os pés. Não podiam admitir que ainda gostavam de ouvir histórias, sob pena de serem alvo de troça dos outros.
— A história que vou contar-vos chama-se: “ O Príncipe Cobra”.
— Ora! Essa já a contou no ano passado! — desvalorizou  o aluno que sugerira os vídeos cómicos.
— Estás enganado. Esta contei-a pela primeira vez na penúltima sessão da Hora do Conto.
— Então mas no ano passado também contou uma história de um príncipe!— insistiu.
— Quase todas as histórias que contei no ano passado tinham príncipes, mas não repeti nenhuma.
O rapaz calou-se. Porém, como não conseguira fazer desistir a professora dos seus intentos, deitou a cabeça em cima da mesa, e fechou os olhos, no que foi seguido por bastantes colegas. Os que o não fizeram, olharam uns para os outros, hesitantes. Um ou outro foi seguindo aquele exemplo. Pretendiam desencorajar a professora, mostrar-lhe o seu completo desinteresse por aquela história. Se queria contar, que contasse para as paredes. Mas ela não fez qualquer reparo a esta atitude e foi contando. À medida que ia progredindo, exagerava propositadamente os momentos de suspense, prolongando-os o mais que podia. As cabeças iam-se levantando. Um a um, lá estavam eles, atentos, seguindo a narração. Ela pôde ler o impacto dos acontecimentos nos seus olhares, que assim desnudavam as suas almas. Leu-lhes a estupefação quando o príncipe se transformou em cobra devido à insistência da princesa para lhe revelar um segredo que queria manter, a tristeza e o desgosto que comungaram com a princesa, a curiosidade  perante os vestígios de lama no quarto da princesa,  a repulsa quando as cobras saíram do rio, o alívio quando o príncipe voltou à sua forma inicial, os sorrisos de cumplicidade quando os príncipes se estreitaram num abraço entre confissões de amor. E, quando, mesmo no final da história, ela concluía realçando a lição que a princesa aprendera, foi a aluna que a havia obrigado a escrever aquele recado, que fez coro com ela, dizendo que não se deve obrigar os outros a desvendarem os seus segredos, se o não quiserem fazer.
Mais uma vez ela tivera a prova do poder que os contos podem exercer ainda hoje na eficácia da transmissão de mensagens e como eles podem ser um forte auxiliar pedagógico.

Menina Triste

       Através da janela da casa da avó a menina observava os pássaros no telhado em frente. Lá ao fundo erguiam-se as janelas recuadas, e era como se alguém tivesse estendido a partir das janelas de guilhotina, um enorme lençol de telhas de barro castanho enegrecidas pelo tempo, pelo musgo, pelos líquenes e humidade. O telhado estendia-se à sua frente como se fora um terraço ondulado, e estava tão próximo, que parecia à menina poder tocar-lhe, se estendesse os braços. Mas não.
Os passaritos saltitavam, aproximavam-se uns dos outros e coçavam com os seus biquitos, as próprias penas e as dos companheiros. Os gorjeios penetravam a manhã triste, chuvosa e húmida. Impossível dizer qual seria a estação. A menina não sabia.
O café de cevada com pedaços de trigo e boroa migados, arrefecia esquecido em cima da mesa da cozinha forrada a oleado, com quadrados floridos vermelhos e verdes.
A menina não conseguia desviar os olhos dos passaritos.Olhava…olhava…olhava…Uma mágoa desmedida e funda ia alastrando como um nevoeiro adensando-se dentro dela, empurrando-a suavemente para o interior de si …
De repente, estremeceu. Foi como se  por algum tempo se tivessse ausentado dali. Olhou à sua volta. Tudo permanecia na mesma, menos ela. Pelo seu rosto corriam silenciosas lágrimas grossas e salgadas. No peito uma dor como um buraco aberto. A menina, sem saber porquê, sentiu pena de si mesma. E os soluços substituíram as lágrimas silenciosas.