"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

sábado, 21 de abril de 2012

Afinal era ele

Eu sabia que era ele quem me telefonava. A qualquer hora do dia ou da noite, lá estava aquela voz nojenta, ora a insultar-me, ora a descrever-me minuciosamente o que me faria com a língua, ora demonstrando conhecimento profundo de todos os passos do meu dia-a-dia. Eu sabia que era ele, o meu vizinho da frente. Era como se o estivesse a ver, do outro lado do telefone, a cara vermelha e gordurosa, a borbulha purulenta a mudar de cor e aquele ar escarninho a martirizar-me, a conspurcar-me. Já o acusara à operadora, exigira que confirmassem o número, mas, sem provas, disseram-me, não podiam fazer nada. Acéfalos! Provas, era o que eu queria! Pretextaram que tinham que proteger a privacidade dos clientes! E a minha, quem a protegia? Também era cliente! Acabei com o telefone fixo. Mas os telefonemas por telemóvel saíam-me caríssimos, e, por vezes, quando estava sem óculos, acabava por atender chamadas com o número privado, por não conseguir ler as letras no visor do telefone. E lá estava a mesma voz maldita a envenenar-me a vida. Fui à Polícia. Os incompetentes disseram que não podiam fazer nada sem ordem de um juiz. Mas foi-me dito que essa autorização só seria concedida em caso de investigações que envolvessem perigo de vida, mortes, assassínios…Pois bem. Matei-o. Um tiro de caçadeira mesmo no meio da testa. Agora sim. Descobriram que era ele o autor dos telefonemas. Quanto a mim…bem…quanto a mim, também fizeram uma descoberta inesperada: sou louca. Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Não tenho culpa da sua teimosia


Estava farta. Farta de que se esquecesse de puxar o autoclismo. Farta de que ele marcasse o território nas sanitas das várias casas de banho. Farta de que não fosse capaz de acertar naquela bocarra tão grande e deixasse o chão salpicado de urina à volta das sanitas. Mal eu acabava de as limpar, começava ele na sua romagem de as conspurcar, uma por uma. O cheiro a urina enojava-me cada vez mais e avivava os meus instintos de vingança.
Um dia, decidi-me. Ainda lhe dei uma oportunidade de se salvar. Disse-lhe:
— Não uses esta casa de banho. Acabei de a limpar. Quero mantê-la mais recatada e limpa, para o caso de vir alguém.
Limpei-a, e, ainda húmida, passei óleo da cozinha nos mosaicos. E deixei o patim do nosso neto bem a jeito, como se tivesse sido esquecido.
Escorregou, bateu com a cabeça na sanita, e…foi-se!
Não tenho culpa da sua teimosia.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Vai um cafezinho?

Estávamos sozinhas, sem vontade de cozinhar, numa sexta-feira. Eu e a Rita. Decidimos ir jantar ao Centro Comercial. Jantámos sossegadamente, e conseguimos manter uma conversa serena, sem nos irritarmos, o que é raro.
No final, ela quis ir dar uma volta a uma das muitas lojas de roupa. Embora sem vontade de fazer compras, fiz-lhe a vontade. Deixei-a deambular a seu belo prazer e eu própria não resisti a um vestido preto, que decidi comprar e experimentar em casa.
Quando estávamos na fila para pagar, ela mostrou-me uma blusa que me agradou. Quis saber se havia noutra cor, e abandonei a fila, regressando pouco depois, dizendo-lhe que as cores não eram do meu agrado. Entretanto, atrás da Rita estava já um indivíduo, acompanhado de uma miúda, certamente a sua filha. Quando chegámos à caixa, a minha filha quis pagar as suas compras. Foi para mim uma sensação inusitada aquela! Senti-me a vivenciar um momento histórico da minha vida. A minha filha pretendia pagar as suas compras com o produto de seu trabalho, embora os seus pacientes ainda fossem poucos, e eu estivesse ali, disponível para pagar.
Mas a minha exultação interior havia de ser cortada por uma voz um tanto arrastada atrás de mim:
— Mas como é que a senhora passou à minha frente?
Olhei aquela cara de sapo, os olhos escondidos atrás das lentes, as repas do cabelo a tentarem esconder uma calvície precoce.
— Desculpe, mas eu já estava à sua frente. Estou com a minha filha, e só me afastei para verificar uma peça de vestuário.
— Não sei nada disso. Eu até pensei que iam pagar tudo junto!
Fiquei estupefacta, sem perceber a lógica daquele raciocínio. Qual era a diferença, se pagávamos tudo junto, ou separado? Eu não estava interessada em criar ali uma discussão da qual sairia a perder, enaltecendo o ego do senhor. Não costumo ter agilidade mental nem verbal para aparar e devolver as estocadas de espadachins exímios. Claudiquei.
— Eu estou com a minha filha. Pensei que tinha percebido. Mas tem razão. Faça o favor. Desviei-me e cedi-lhe a vez.
— Agora não. Já começou!
O senhor da caixa observou, conciliador.
— Há mais caixas, senhor. Vou já abrir outra.
O cara de sapo não desarmava.
— Não é isso que está em causa, percebe?
— Eu não me meto! — retorquiu o jovem da caixa erguendo os braços apaziguadoramente.
O cara de sapo continuou a resmungar, enquanto outra caixa era posta à sua disposição.
Eu ficara visivelmente perturbada. Enquanto fazia o pagamento, o jovem da caixa piscou-me o olho, manifestando dessa forma a sua solidariedade.
Ainda tentei balbuciar algumas palavras de justificação, explicar que ela, a minha  querida filha, se oferecera para pagar, pela primeira vez, estando eu ali na sua companhia… Mas ela interrompeu-me.
— Deixa, mãe, deixa!
Calei-me e viemos embora. Mas não me saía da cabeça o ar daquele peralvilho, a tentar dar-me uma lição de civismo. A mim, que eduquei os meus filhos no respeito pelos outros, que cedo o meu lugar no autocarro aos idosos, às pessoas que estão carregadas, às mães grávidas ou com crianças, que cedo a minha vez nas filas de pagamento dos supermercados quando as pessoas têm apenas uma ou duas peças para pagar, se eu tiver o carro cheio, que facilmente peço desculpa, “com licença”, e “obrigada”, enfim, que me considero atenta aos outros e respeitadora! Sentia-me injustiçada! O bom senso apelava a que esquecesse o incidente, e nem sequer lhe desse o mínimo de importância. Mas o meu amor-próprio estava ferido, e eu fervia interiormente de raiva e impotência. A minha filha, percebendo o meu estado, tentou serenar-me:
— Mãe, esquece! Olha, eu ainda vou ao supermercado comprar os meus iogurtes. Vens,ou queres ir para o carro?
Esta deixa deu-me a certeza de que esta história não ia ficar por aqui. Peguei na chave do carro. Olhei em volta, e, apressadamente, dirigi-me para a máquina automática distribuidora de bebidas. Tirei um café, e coloquei-me à porta da loja, qual felino que aguarda a sua presa. O boca de sapo saía, calmamente, na companhia da filha. Estuguei o passo, avancei, e tropecei no homem, vertendo o conteúdo do copo de plástico na sua roupa:
— Desculpe, desculpe, não o vi! Espero que não se tenha queimado!
Apanhei o copo de plástico do chão e afastei-me rapidamente. De caminho atirei o copo no contentor amarelo do lixo. Alguns metros depois, sem parar, olhei para trás, tentando avaliar os estragos. O homem estava atónito, congelado, a olhar para a roupa toda manchada. A garota esfregava-lhe o blusão, provavelmente com um lenço de papel.
Ainda tive presença de espírito para informar a empregada da limpeza com a qual me cruzei e que fazia naquele momento a manutenção, que os seus serviços eram precisos no outro extremo do piso.
Quando a minha filha chegou ao carro, eu ainda estava engasgada pelo riso. Pelo menos, agora, o homem tinha razão para me amaldiçoar.