"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

sábado, 6 de agosto de 2011

Fugir





Vejo-as passar à minha frente, sacudindo as ancas, numa provocação que me enche de raiva. Eles também passam, para cima e para baixo, para baixo e para cima, num vaivém de figuras de carrossel. E eu aqui fechada, espreitando através das grades do portão. Não me apetece dizer-lhes nada, não vou mesmo dar-lhes conversa. Isso é o que eles querem, que eu reaja, mas estão muito enganados. Não vou dar-lhes esse prazer, iriam pensar que os invejo, que invejo aquela vida de liberdade e de aventura, é claro que os invejo, mas, no que depender de mim, jamais o saberão.
Já lá vai o tempo em que também eu podia caminhar, galgar a distância que me separa do outro lado do caminho, e embebedar-me nessa sensação maravilhosa do vento a envolver-me como um véu enquanto corria como louca pelos campos…Sentir que tudo quanto está à nossa frente nos pertence…as flores, as borboletas, os pássaros, as lagartixas, a erva tenra debaixo dos nossos pés, os cheiros… os cheiros, sim, os cheiros não são iguais aqui, nesta prisão onde me obrigam a permanecer… Insensíveis! …Eu sei…lá fora…ai lá fora…os cheiros são outros, são os cheiros da terra…do mundo…
A culpa foi minha, eu sei…devia ter tido mais cuidado…abusei…em vez de me contentar com o que tinha e respeitar as regras, quis mais, muito mais… e o gozo que me dava pisar o risco…Mal apanhava uma aberta, escapulia-me, a absorver tudo o que pudesse naquele momento. E voltava, depois de muitas horas, consolada...Mas Eles, é que não queriam saber do meu consolo… Recebiam-me histéricos, por onde é que eu andara, já me tinham procurado por todo o lado, imaginado mil malefícios que me poderiam ter feito ou acontecido…já iam falar com a polícia, os bombeiros….Tanta confusão por uma coisinha tão simples…Foi nessas escapadelas que eu conheci a vida, a verdadeira vida…Sim, não é em casa, fechada a sete chaves, que a vida vem ter connosco…que se aprende a viver…Fecharam-me! A culpa é minha, e só minha!... Mas sou assim…de extremos. Quero aproveitar ao máximo, aquilo que tenho no momento, beber de um só trago, com sofreguidão. Nunca penso no futuro…o meu futuro é aqui, agora, neste momento …Que digo eu? Não é este o futuro que quero, não, eu quero sair por aí, vaguear sem destino, explorar os cantinhos mais estreitos, conhecer o que há para conhecer, viver tudo o que há para viver… Bem sei que, se eu não tivesse aparecido grávida, Eles certamente me dariam mais liberdade…Mas nessa altura eu sabia lá o que era a vida…apenas me deixei ir, obedeci àquilo que o corpo me pedia…Fiquei tão espantada quanto Eles… Depois de casa roubada, trancas à porta, dizem. Estou farta deles…O que eu queria era poder sair daqui, partir ao encontro desse mundo…bem sei que lhes devo muito…Acolheram-me, trataram-me sempre muito bem, a mim e aos meus filhos, é certo…Mas eu sempre correspondi, com a minha dedicação, lealdade…Então os meninos…meus anjinhos…como eu os adoro…Mas agora partiram, foram à vida deles…e eu? Que faço eu agora aqui? Ela fala-me sempre rispidamente, não esquece as asneiras que eu fiz, os desgostos que lhe causei…não acredito que não goste de mim, mas é incapaz de o mostrar. Por isso, ai! Se eu encontrar o portão aberto, nem olho para trás…vou-me embora. Tenho a certeza que não fará o mínimo gesto para me encontrar…digo eu…nem sei…Da outra vez que fugi, bem vi a alegria nos olhos dela quando me trouxeram a casa. Abraçou-me, e como foi meiga comigo! …Só ternura, só amor, eu era uma marota, que mal me tinham feito, estavam numa preocupação….mas depressa lhe passou este ataque de ternurite…
Nem sei porque fecham o portão à chave! Nem sequer há já o risco de eu voltar a engravidar! Trataram logo de me mandar operar! Privar-me daquilo que é tão caro a todas as fêmeas! Essa nunca lhe perdoei! Como foi capaz de me tratar como a um vulgar animal? Retirar-me a minha feminilidade! Bem a ouvi dizer aos meninos que, se voltasse a aparecer grávida em casa, me punha na rua. Nessa altura, só a ameaça encheu-me de pavor! Já lá vão uns bons anos! E Ela? Como se sentiria se lhe roubassem a capacidade de ser mãe, se a proibissem de sair, se só pudesse ver o mundo através das grades? Ela, que não pára em casa, sempre com o carro para trás e para a frente, e volta carregadinha de compras, e eu para aqui o dia inteiro, sozinha, a sonhar com os campos por onde correr, com o rio, com… Bem podia levar-me com ela, mas não! Deve ter vergonha de mim. Não sou de alta estirpe! Mas ainda não perdi a esperança! Preciso é de encontrar uma falha na vigilância! Ando cá a arquitectar um plano! Hoje à noite vou tentar de novo a minha sorte. Antigamente eu conseguia saltar o muro, e os portões, mas agora é impossível! Subiram-nos, e colocaram-lhes arame farpado e vidros cortantes…Estou farta de que me imponham regras, com a um animal de circo. Quero experimentar essa sensação de não pertencer a ninguém, nem a lugar nenhum, partir sem eira nem beira, viver a vida vadia daqueles que têm como tecto as estrelas e como paredes, o infinito…Sim, o céu e o infinito pertencem-me, são de todos, e eu pertenço-lhes. Aqui já não reconheço o meu lugar. A minha natureza chama por mim… Às vezes adormeço a chorar e, quando acordo, ainda estou a gemer. Isto quando não estou ocupada com a ideia de fugir. Ultimamente é só no que penso...Fugir….fugir….fugir….O homem da lenha vem descarregar e o portão vai ser aberto. Salto para cima da camioneta e aninho-me debaixo do oleado. Quando derem pela minha falta, já eu vou longe. Gosto do homem da lenha. Sinto-lhe no corpo e na roupa o mesmo cheiro que tinha o pai dos meus filhos… e ele também gosta de mim...pressinto-o quando me afaga, e eu lhe lambo as mãos rudes e ásperas, e ele diz com a sua voz cheia e rude:
— Ah! Canita bonita!