"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Sessão de autógrafos





Fui convidada pela minha amiga C. dona da Livraria Pretexto, para fazer uma animação na celebração da parceria da sua livraria com a Editora LEYA.O escritor António Lobo Antunes iria estar presente para autografar o seu quarto livro de crónicas. Perguntei-lhe o que tinha em vista, e ela sugeriu uma personagem célebre da Literatura portuguesa, talvez. Falou comigo no dia vinte e três, na festa do S. João, enquanto o pinheiro ardia, onde nos encontrámos casualmente. O evento seria na quinta-feira, dia 30, às 18.30h. Para isso ela devia ter convidado um ilusionista que tirasse da cartola a tal personagem célebre à medida dos seus desejos.
Sugeri então a leitura de uma crónica do famoso escritor, ainda sem saber que o seu livro de crónicas tinha algumas lidas por ele. Mas, quando as ouvi, fiquei tão tocada pela ternura e sensibilidade com que ele as leu, que pensei que seria sacrilégio eu ler aquilo que era seu e lido com tanta alma. Foi então que me surgiu a ideia de escrever um texto onde tentaria incluir alguns títulos da sua vasta obra. O desafio estava lançado, e as ideias foram chegando sem esforço. E eu fiquei satisfeita com o produto final.
No dia indicado lá estava eu, os donos e empregados da livraria, os representantes da Leya, e alguns convidados. Uns trazidos por mim, meus amigos, outros vindos através de variados contactos. Havia piano, que seria tocado por um jovem professor do Conservatório. Depois de muito esperado, o senhor chegou, muito simples, discreto, recusando sentar-se no lugar de vedeta, após quase uma hora de espera. Ataquei o texto com o piano a acompanhar-me, e a sobrepor-se, por vezes, à minha voz. Eu receava que o senhor considerasse um abuso o que eu estava a fazer, servir-me assim, dos títulos dos seus livros... Mas li, com calma e serenidade. Não tinha nada a perder. Os que estavam ali exclusivamente pelo escritor, teriam que aguardar mais um pouco. À medida que ia lendo, fui-me apercebendo da boa receptividade do meu texto. Não consegui ver, do lugar de onde estava, o rosto da estrela do dia. Mas, quando terminei, não lhe notei qualquer reacção. Nem podia ter. O senhor nem me ouviu. Está surdo, não sei se como uma porta, ou um postigo. Não me ouviu e ponto final. Quem sabe se foi melhor assim? Também não pôde ofender-se. Seguiram-se os discursos habituais. A dona da livraria, o representante da Leya, e, contrariamente ao que é habitual, (disseram-me), o grande escritor quis falar. Estava bem-disposto, deu um arzinho da graça que não costuma ter nestas situações, e deu também uns passos em direcção ao escaparate que estava à sua frente, para pegar num livro. Que coincidência! Eu estava precisamente a olhar para aquele livro, e a lembrar-me que ele o tinha mencionado numa das suas crónicas, e a pensar que no final da sessão o iria comprar. É um livro do escritor espanhol Juan Marsé, Rabos de Lagartixa”. Falou brevemente deste autor seu amigo, com admiração e amizade. Recomendou esta leitura aos presentes, em vez de lerem porcarias…Foi esse livro, certamente, que o roubou ao mutismo no qual costuma refugiar-se, em situações semelhantes. Resumindo: estava a sair-se muito bem, e a disfarçar espontaneamente a antipatia que ele mesmo confessa ser seu apanágio. Pois é: estava! Porque em seguida, terminou, secamente:
— Agora assino meia dúzia de livros, que não tenho paciência para mais!...
O senhor por acaso esqueceu-se que as pessoas estavam ali para que ele autografasse um livro que ele tinha escrito? Que não arredaram pé, apesar de ele ter chegado atrasado? Que ele é tão conhecido e tem tantos livros publicados porque há quem os leia? Que havia ali leitores de toda a sua obra? E depois, para quê? Diz-se que pela boca morre o peixe…para quê esses tique de vedeta antipática, se, no fim de contas, acabou por assinar todos os livros que os presentes lhe estenderam? É certo que também houve quem não tivesse tido paciência para as suas “manias” e abandonou a sala. Mas, se acabou por autografar tudo, porquê aquelas palavras? Ou faz gala em ser desagradável?
Bom, mas aqui vai o texto que eu escrevi para este evento.

O meu avô era uma pessoa singular. Morreu com quase 93 anos, quase cego, depois de uma vida cheia, aventureira e plena de fantasia.
Andou pelos brasis, durante anos não deu notícias, perdido por esses cus de judas…por lá construiu um vasto património… Mas havia de regressar à terra tão pobre quanto partira. As suas plantações foram consumidas pelas chamas, e, enquanto todos os seus criados lutavam contra o braseiro, ele ali ficou, observando-as de braços caídos, murmurando: “ Que fazer quando tudo arde?”
Durante algum tempo mergulhou num mundo só seu, um mundo negro e cinzento como as matas devastadas pelas chamas por onde deambulava. Era comum encontrarem-no junto ao rio, a falar sozinho, discursando incendiado, a veia no meio da testa a latejar…a latejar…Quando lhe perguntavam porque falava sozinho, exaltava-se, chispando palavras cortantes:
— Ignorantes! Eu não falo sozinho! Estou a fazer uma exortação aos crocodilos!
E conta quem viu, que, em certas noites, aqueles enormes répteis largavam as águas do rio e vinham escutá-lo pachorrentamente enquanto ele prosseguia as suas perorações.
Quando regressou à terra, a minha avó tinha conseguido fazer florescer a pequena quinta, a custo de uma férrea vigilância e de apertada economia de subsistência. Era uma mulher severa, rígida, pragmática, que nunca esquecia uma ofensa, nem quem lhe estendia a mão. Arrogava-se possuidora de uma memória de elefante. Depressa concluiu que o meu avô estava imprestável para a ajudar a gerir a quinta. Católica fervorosa e beata assumida, a todo o momento se persignava, invocava o Santo Nome de Jesus, sacava do rosário e predizia a condenação do marido, que ela jurava estar possuído pelo demónio, às profundezas do Inferno. O meu avô troçava, soltava uma gargalhada escarninha:
— Que sabes tu disso? O conhecimento do Inferno é comigo! Conheço eu mais do inferno e do paraíso do que tu, sempre enfiada na sacristia!
— Herege! — acusava ela.
— Porque não te calas, Aurora? O meu Inferno és tu! Eu ainda hei-de amar uma pedra!
Anos depois, quando ela morreu, encontrava-o eu sentado no jardim, dia após dia, olhando o vazio, eu hei-de amar uma pedra… eu hei-de amar uma pedra…eu hei-de amar uma pedra…balbuciava, imerso na sua demência, da qual receávamos não mais voltasse. Sobre as pernas, um velho caderno de capa gasta e folhas enroladas nas pontas. “Letrinhas das cantigas”, podia ler-se, com letra bem desenhada, no frontispício do caderno escolar. Eram os versos que ele escrevera à minha avó no tempo do namoro, e que ela guardara no fundo do baú do quarto.
Mas um dia levantou-se de manhã cedo, e não o encontrei no lugar habitual. Embrenhara-se pelos pinhais adentro, e, quando voltou, trazia no olhar o brilho e o sorriso enigmáticos de quem é detentor da revelação exclusiva dos códigos da fortuna. Teias de aranha colavam-se à roupa desalinhada e empoeirada.
— O segredo, filha, está nos pássaros… Eles tudo sabem. Tudo conhecem. O segredo está na explicação dos pássaros. Eles sabem, eles sabem…
— O quê, avô?! O que é que eles sabem?
— Tudo o que há para saber!... Eles sabem!...
Depois, com uma energia invulgar, atirou-se à recolha dos desperdícios da fábrica. Passava noites acordado. E numa dessas noites, prisioneiro no arquipélago da insónia, começaram a nascer das suas mãos pequenas miniaturas, autênticas obras de arte, homens, mulheres e crianças em movimento, realizando várias tarefas do quotidiano, que minuciosamente apurava com solda e maçarico. E pássaros…muitos pássaros, todos diferentes, que ele distinguia pelo nome. Apareceram em seguida, esmiuçadas ao mais ínfimo pormenor, carros, carroças, comboios, monociclos, barcos, aviões que ele alinhava na cave ao longo das prateleiras que se iam enchendo de pequenos milagres. Trabalhava com frenesim e despedia-se dos bonecos mal o sol espreitava pelo postigo. E quando à tardinha, descia à cave, perguntava, solícito, com genuíno interesse:
— Então, como vão as coisas? Boa tarde às coisas aqui em baixo!
E começou a inventar histórias fantásticas em que era sempre o protagonista, e os seus bonecos surgiam insuflados de vida. A mais extraordinária era a “ história do hidroavião”, que ele comandara numa noite escura como breu, apenas iluminada pelos relâmpagos que intermitentemente se acendiam no céu. Movido pela paixão, ia ao encontro da sua amada que ficara prisioneira do outro lado do globo. E tecia considerações sobre as paixões, as verdadeiras paixões, as que valia a pena viver.
Prometeu-me que ainda havia de escrever um livro, um só, exemplar único, para mim, que me serviria de bússola para a vida. O “Tratado das paixões da alma”. Nunca o escreveu.
No seu leito de morte, como em vida, vagueou pelas brumas da loucura e da lucidez. Quando lhe apertei a mão, olhou-me com olhar mortiço e sussurrou:
— Meu amor, ontem não te vi em Babilónia!
— Sou a Teresa, avô!
— Ah! Teresa! Vou partir!
— Por favor, avô, ainda não… não entres tão depressa nessa noite escura!
— Não chores, filha! Porque é que há-de ser noite escura?! É a ordem natural das coisas!
Depois os seus olhos fixaram-se num ponto à sua frente.
— As gaivotas! Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Não! …Não são cavalos…são as naus…Estão aparelhadas para partir…Vêm buscar-me! As bestas…qual delas me vai levar?... A besta do paraíso ou a do inferno? Ah! Já vejo a aurora…a aurora…
E, ao mesmo tempo que a estrela da manhã fazia a sua aparição, o último sopro de vida abandonava o meu avô, num profundo e tranquilo suspiro.
Reconforta-me pensar que a Aurora que aos seus olhos surgiu, era a minha avó. Mas com ele nunca se sabe.