"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Estávamos à tua espera...

Depois das aulas, encaminharam-se para a margem do rio. Iam todos a dizer os disparates do costume, só ele ia calado, a pensar na vida.
Mais uma vez, sentia uma enorme dor no meio do peito. Uma dor que não era como quando lhe doíam os dentes, ou a barriga, mas que era ainda mais forte, misturada com uma grande tristeza. Não! Não era como as outras dores…era muito, muito pior…fazia-o desejar estar sempre a dormir. E era isso que faria, se não fossem os sonhos… Os sonhos! Eram mais pesadelos…Mas nem sempre tinha pesadelos…às vezes conseguia dormir mesmo, como uma pedra…e nesses momentos esquecia…Não sabia como encontrar solução. Naquele momento, parecia-lhe que não havia, para o seu problema. Sentia-se um fraco. Apetecia-lhe nunca mais voltar a pôr os pés na escola. Mas depois vinha a guarda buscá-lo a casa, ele sabia…e o subsídio que ajudava a manter a família, ia à vida… Só se fugisse…para muito longe, onde ninguém o encontrasse…
Se não fossem a Sónia, a Gina e o Augusto… e o Leonardo, claro, o seu irmão gémeo…Às vezes ele armava em parvo, mas eram amigos…
À saída da escola, antes de voltar para casa, gostava de passar por ali. Gostava de atirar pedras ao rio, ver o quão longe elas podiam chegar…ou de ficar a apreciar os remoinhos que as pedras produziam, e a luz que entrava pelas águas adentro…as nuances das cores…verde-claro, verde-escuro, cinzento, azul-escuro, quase preto. Perdia-se a olhar para os reflexos distorcidos das árvores nas águas, que caminhavam barulhentas e imparáveis para o mar… Ao ouvir aquele cantar estrepitoso, esquecia parte dos seus problemas, serenava...
A Sónia… gostava dela. Ainda não namoravam, mas estava quase… o dia de hoje era decisivo…Por isso estavam todos, para disfarçar…De outra maneira não conseguia apanhá-la ali. Ela não largava a Gina! Mas o António ia também tentar a sua sorte. Toda a gente sabia que ele gostava da Gina…até a setôra de Português tinha dado conta!…
Boa vida era aquela, entregarem-se à brincadeira sem ninguém a chatear…não queria pensar no que o afligia, agora queria era embriagar-se de brincadeira, e…talvez…abraçar a Sónia, abraçá-la, beijá-la, apertá-la, como sonhara fazer tantas e tantas vezes, quando, à noite, debaixo dos cobertores, a imagem dela se vinha misturar com o choro que rebentava sem querer, depois de perseguido por memórias de episódios atulhados de humilhações e ameaças de colegas, de funcionários a gritarem pelos corredores, de professores autoritários e cegos ou tão permissivos que não ousavam estabelecer a ordem, receosos, também eles, de vinganças descarregadas nas pinturas dos carros. E alcançava alguma paz quando, assim abraçado à Sónia, acabava por adormecer, exausto, percorrido por um frémito quente e libertador.
Ia mostrar-lhe os recantos da mata, e, se tudo corresse bem, selariam o namoro à beira do rio.

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Chico foi tirando a roupa lentamente: primeiro a tee-shirt, depois os ténis, as meias. Enrolou-as e colocou-as vagarosamente dentro dos ténis. Arrumou-os um ao lado do outro.
Os companheiros riram-se.
Aquilo era tudo estudado. O Chico apelava a um momento, por mais breve que fosse, de protagonismo. Gostava de se sentir o herói, admirado, já que não era capaz de resolver as situações na escola que tanto o preocupavam e humilhavam. Mas aqueles quatro amigos eram fixes!
Depois tirou as calças, e, sem pressas, com arrepios de frio, foi entrando nas águas revoltas do rio.
— Mas que estás tu a fazer? Pára!
— Ainda ficas doente! Depois eu é que as pago! — avisou o Leonardo.
Leonardo era três minutos mais velho que o irmão, e, à conta disso, fora muitas vezes chamado à vara por não ter impedido algumas travessuras do Chico.
Naquele momento o riso foi morrendo em tempos desencontrados no rosto dos companheiros. Já completamente apagado nos lábios dos três miúdos, ainda a Sónia mantinha um resquício de sorriso, antes de um grito que irrompeu da sua garganta.
— Não sejas parvo, Chico! Pára! Volta!
O pânico que explodiu nas palavras da Sónia contagiou os outros miúdos. Os gritos tumultuosos e indisciplinados romperam o ar, atravessaram as folhas dos choupos, os ninhos abandonados, e perderam-se para lá das nuvens.
Chico deu duas braçadas, mas rapidamente se apercebeu de que o lodo do rio não lhe deixava espaço para nadar. E a corrente era ali muito forte. Os seus movimentos começam a ser cada vez mais desordenados e desesperados, as braçadas descoordenadas. Tenta manter a cabeça fora das águas, mas começa a cansar-se. Os garotos vêem o seu corpo desaparecer no interior do rio, enquanto gritam o seu nome.
As lágrimas, os soluços, a incredulidade submergem-nos, ao mesmo tempo que assistem, impotentes, ao desaparecimento do amigo. Leonardo, o irmão gémeo do Chico, começa nervosamente a largar os ténis. Os três garotos adivinham-lhe as intenções e agarram-se a ele, manietando-o. O corpo do Chico vem ainda à superfície mais duas vezes, em sítios diferentes do rio, arrastado pelas águas. Deixam de o ver. Sónia já não tem voz para continuar a gritar.
Chico sente o seu coraçãozinho bater, num pânico desenfreado. Não era isto que ele desejava. Pretendia apenas assustar os companheiros…para eles saberem que não era nenhum cobarde… Mas agora sente o arrependimento a possuí-lo. Não tem forças para lutar com as águas. Os membros entorpecidos parecem já não lhe pertencer. Imagens da mãe, do pai, dos irmãos, dos colegas da escola, da cadelita rabina, que o recebe sempre que chega da escola, e o persegue até à porta da cozinha…perpassam-lhe à frente. Sabe agora que nunca mais vai voltar a ser maltratado, ninguém mais lhe vai fazer mal. Relembra o beijo roubado à Sónia, na mata, quando ficaram os dois para trás…Sente-se empurrado cada vez mais para o fundo. A oração que a avó lhe ensinara começa a surgir dentro de si: “Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador…” Já não sente medo…Entrega-se. Abre a boca e deixa entrar a água que rapidamente lhe inunda os pulmões. Começa a sentir uma paz infinita… o último esbracejar…Flutua…Lá de longe uma música suave e inebriante vai-se aproximando.
Uma luz azul, forte e brilhante, rasga as águas e o lodo…À sua frente a luz sugere uma figura radiosa, onde sobressai um sorriso infinitamente doce.
Não fala, mas Chico ouve-lhe as palavras no lugar do coração.
— Chamaste-me? Aqui estou. Vem. Estávamos à tua espera.
A figura levanta-o nos braços. Chico sente-se a pairar, leve, como se o seu corpo se tivesse esfumado.
A luz que emana daquela figura que Chico pressente ser o anjo que invocara, começa a alastrar e a inclui-lo dentro dela, ficando ambos envolvidos num gigantesco ovo feito de luz. Ao mesmo tempo, uma onda de plena felicidade, de um amor infinito, vai tomando conta dele.
Porém, fora daquela bolha enorme de luz, de amor e de felicidade, Chico pode observar-se enredado no lodo, como se se tivesse desdobrado e estivesse a ver-se num ecrã. Tremulamente mexe os lábios para fazer uma pergunta, mas as palavras não lhe saem. Ficam apenas no seu pensamento.
— Não te preocupes. É apenas uma carapaça, para que os que te choram possam fazer o luto.
E outra pergunta atravessa-lhe o pensamento.
— Estou morto?
E ouve a resposta no seu coração, da mesma maneira que já tinha ouvido as outras.
— Não!... Acabaste de nascer.


domingo, 29 de maio de 2011

A Régua

Na escola, a Rosa era a menina mais castigada por falta de pontualidade. Exagerava, mesmo. Chegava já quando a aula estava em pleno curso. Por vezes, conseguia penetrar sub-repticiamente, e ir sentar-se sem que a professora a visse. Isso acontecia quando as alunas que a professora escolhera para a verificação dos trabalhos de casa, e que depois iam fazer a ronda pelas carteiras das colegas, estavam de pé, à volta da secretária. Aí, a Rosa conseguia safar-se no meio da confusão. Mas se esse momento já tinha passado, não escapava ao castigo. Tanto Maria de Lurdes como as colegas, já quase não ligavam, de tal maneira esta situação se tornara um hábito. Chegava desgrenhada, com a trança grossa que lhe corria ao longo das costas, esfiapada. Algumas vezes, apresentava-se sem sacola, o que assanhava ainda muito mais a fúria da professora. Os olhos grandes e pestanudos não deveriam ter visto água, uma vez que as remelas eram visíveis. Quando falava, a saliva soltava-se-lhe com frequência, e, por vezes, apresentava feridas nos cantos da boca. Quando acabava de falar, o lábio inferior ficava-lhe descaído, como se estivesse preparada para ter que responder prontamente a alguma questão. Rosa era um dos “bombos da festa”, quase diários, onde a professora aproveitava para manter a sua forma física sempre impecável. O que Lurdes não sabia na altura, era que a mãe da Rosa estava muito doente, acamada havia alguns anos. As irmãs saíam de madrugada, ainda o sol não luzia no buraco, para trabalhar na fábrica, e Rosa não tinha quem a chamasse de manhã, nem quem lhe penteasse a trança que aparecia num estado desleixado. A doença da mãe não interessava à professora, nem era motivo para que ela fosse mais tolerante para com a pobre Rosa.
Ora um dia a professora encomendou ao pai da Rosa, que era marceneiro, uma régua, objecto pedagógico tão do agrado da maioria dos professores daquela época. Não, não era uma régua em forma de palmatória... essa régua em forma de palmatória, com cinco olhos vigilantes e cúmplices dos castigos, só soubera da sua existência através dos relatos da mãe. As réguas agora usadas pela sua professora tinham cerca de seis centímetros de largura e trinta de comprimento. Uma manhã a régua chegou, comprida e encerada, de um belo tom de mel, pelas mãos de Rosa, que mais uma vez chegou atrasada. Não, não era uma régua em forma de palmatória...Essa régua em forma de palmatória, com cinco vigilantes e cúmplices dos castigos, só sabia da sua existência, através dos relatos da mãe.
Quem havia de estrear a régua? A candidata estava lá, à mão de semear, havia motivo. Não era preciso escolher mais para testar a eficácia de tão odioso instrumento de tortura. E assim, a Rosa estreou a régua, fabricada pelo seu pai, e que ela própria transportara até às mãos do carrasco.

O Caderno da Classe


Chegara a sua vez de escrever no caderno da classe. Era uma grande responsabilidade, dizia a professora, e tudo tinha que estar impecável, sem rasuras nem erros…
O caderno ia passando pelas mãos de todos os alunos. Todos tinham que escrever lá uma cópia, ilustrada por um desenho, um ditado, as contas, os problemas. Nada de mais…o habitual, o que se fazia todos os dias…Mas agora, era no Caderno da Classe. O peso desta responsabilidade tolhia-lhe os movimentos, e o raciocínio. O caderno era de linhas, isto é pautado, e mesmo as contas e os problemas tinham que ser feitos nas linhas. Havia regras rígidas: os números tinham que ser escritos de linha a linha, para ficarem todos do mesmo tamanho. As letras também obedeciam a normas: os “efes” tinham que ter a parte superior a tocar o extremo da linha superior, e a parte de baixo devia tocar a linha inferior. Os “éles”os “bês,” os “agás,” deviam tocar a linha superior, os "tês" e os "dês," ficavam a dois terços. De igual modo, os "guês" e os “jotas” deviam tocar a linha de baixo, e os “pés” e os “quês de aste”, ficariam na linha inferior até dois terços. O nervosismo assaltava-a, queria fazer boa figura. Felizmente que já tinha uma caneta de tinta permanente, luxo a que as outras meninas da sala não chegavam, com excepção da Carminho, filha de um industrial da terra, a única que tinha direito ao “inho” no nome, e ao beijo diário da professora. Não corria por isso o risco de que algum borrão indesejado caísse na escrita, desde que não usasse movimentos bruscos. Mas estava sujeita a outros imponderáveis: era escrava dos nervos. E, com a língua de fora, ao canto da boca, lá ia fazendo a sua tarefa. Até que parou, perturbada: o oito ficara com o arco superior ligeiramente abaixo da linha. Então, irreflectidamente, levou o aparo ao local onde se quedara o arco, e desenhou-o novamente, por cima. O resultado não podia ser pior. A professora farejava estes pequenos incidentes e já estava em cima dela, a ver a obra. E uma valente bofetada sai disparada, indo assentar no rosto de Lurdes. Ao mesmo tempo, resultado do impacto, cai um borrão de tinta grossa e azul, no Caderno da Classe. A raiva da professora explode:
— Ah! Sua grandessíssima burra! Lindo serviço!
Lurdes sente a face em brasa. As lágrimas inundam-lhe os olhos em vagas, e espraiam-se, quentes e salgadas. Recrimina-se intimamente pela falta de jeito que a levara a tentar emendar o não emendável…
A professora corre para a secretária. Lurdes aguarda com o coração a bater, o castigo que se seguirá. Mas, em vez da régua, a professora regressa com o mata-borrão que tinha sempre na sua secretária.
E, ao fim da tarde, enquanto faziam as fichas com os problemas de Aritmética, viu a professora à volta do Caderno da Classe, muito compenetrada, com o pincel e o frasquinho de descolorante com que ela emendava os eventuais erros no caderno dos mapas de faltas mensais dos alunos que enviava para a direcção escolar…