"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

sexta-feira, 11 de março de 2011

Violência





Não era de ferro. Sabia que lhe competia guardar a casa, mas se via uma aberta, pirava-se. A sua natureza chamava por ela. Era um apelo demasiado forte para ser ignorado.
Olhou para ele. Alto, autoritário, pernas abertas, de chibata na mão direita. Batia com ela na mão esquerda, ritmicamente, experimentando o poder desse instrumento que costumava descarregar nela.
— Anda cá! Aqui! Já!
Avançou para ele, rastejando. Mal conseguia suster-se nas pernas. Um medo espesso começava a inundar-lhe os sentidos, paralisando-os.
O coração, descomandado, batia-lhe na boca, ameaçando sair disparado.
— Ah! malandra! Chega-te aqui! Já te vou ensinar a respeitar as ordens.
Aterrorizada, viu-lhe as botas cada vez mais próximas. Aninhou-se, à espera do castigo. À sua volta começa a alastrar uma poça de água tépida.
Fere-lhe os ouvidos o riso despropositado do dono. Um riso quase tímido, primeiro, depois desembestado. Um riso que adivinha cariado e negro, quente e pesado.
— Já não susténs as águas? Mijaste-te de miúfa, não foi?!
Só então se apercebe da natureza da água. Mais do que as chicotadas a que costuma submetê-la, dói-lhe aquele sorriso escarninho, que a sufoca em marés de continuado desprezo.
Levanta-se. Segura-se firmemente nas patas traseiras. Recua. Mede a distância. Dispara em galope, derruba o dono e crava-lhe os dentes na garganta.
Não era de ferro.