"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Fantasias





Sentia-se atraída pelo universo fantástico povoado por príncipes e princesas, fadas e bruxas, madrastas e enteadas más vingadas pelos bons. Adorava sonhar com esse mundo de luxo, com vestidos majestosos de brocados, sedas, cetins e veludos, que estava tão perto nos livros que devorava… Interrogava-se sobre a razão por que tinha nascido ali, naquele tempo e naquele lugar, e não no tempo dos castelos, cortes e cortesãos, bailes e princesas a arrebatarem o amor do seu príncipe.
Fantasiava a sua vida. Vestia-se com um vestido que ela mesma alinhavara de um lençol velho, ao qual pegara o corpo de uma bata que a mãe tinha talhado havia algum tempo e que aguardava vez para lhe dar corpo. Depois, à volta do decote, pregara um bocado de tecido de pelo que estava destinado a servir de gola num casaco da mãe. Desenhara e recortara numa cartolina um cone que fazia de chapéu de bico, de onde saía um bocado de tule, mais um achado nas tralhas que a mãe guardava na arca, à espera de alguma vez poderem ser utilizadas.
Nessas alturas passeava-se com um ar circunspecto, assumindo a sua alta hierarquia de princesa. Adaptava a linguagem, dirigindo-se à mãe num tom altivo, estendendo-lhe a mão para que fosse beijada, e pedindo aos criados imaginários que fossem à cavalariça selar o seu cavalo para poder passear pelas matas do palácio. A mãe primeiro barafustava quando descobria que ela andara a remexer nos baús e deixara tudo virado de pernas para o ar. Mas depois ria-se, e aparava-lhe o jogo, respondendo--lhe muitas vezes no mesmo tom:
— Sim, vossa majestade! Ou: “Os criados foram despedidos.”
Aos domingos à tarde, ia sentar-se debaixo da mesa da sala de jantar, com a roupa de faz-de-conta, o queixo bem levantado, enquanto espreitava o programa infantil, que passava na televisão, no único canal que existia. Nessa altura o irmão mais velho, o qual naquela altura sentia mais adequado às suas brincadeiras, podendo fazer de príncipe (já que o mais novo seria demasiado pequeno para fazer esse papel), estava fora de casa, num colégio interno. E só vinha a casa por altura das férias. Lurdes sentiu-se ao princípio amputada do seu companheiro de brincadeiras. Mas a admiração que sentia pelo irmão mais velho foi-se acentuando, e aquelas longas esperas tornaram-no ainda mais desejado, venerado e querido. Era com verdadeira ansiedade que se aliava aos pais na espera, quando se aproximavam as férias, e reivindicava sempre um lugar no carro quando o iam buscar à estação do comboio em Nelas.
Dessa vez Lurdes sentiu-se triste e desiludida, quando o irmão, assumindo a sua posição de rapaz mais velho, pouco lhe ligou, mostrando abertamente que não alinhava em brincadeiras de miúdas. Mas Lurdes acabou por cativá-lo e a sua natureza ainda infantil não pôde resistir ao apelo das brincadeiras da irmã.
Durante o almoço houve comentários brincalhões, devido ao facto de o rapaz estar a estranhar a alimentação, o que se manifestara na expulsão de gases intrometidos. O irmão mais novo, então, fazia grandes fitas, colocando ostensivamente a mão no nariz, e abanando o ar com a mão, o que deixava António um pouco envergonhado.
Os garotos gostavam de se reunir na cozinha, à volta da mãe. E, enquanto ela ia lavando a loiça, António ia contando as peripécias vividas durante o tempo em que estivera fora de casa. Lurdes estava particularmente satisfeita com a presença do irmão. Desapareceu por instantes e voltou com a sua roupa e ares de princesa.
— Vá, eu agora sou uma princesa, e vou escolher o meu par para ir ao baile. Ponham-se os dois aqui.
E, enquanto falava, Lurdes alinhava os irmãos, que se deixavam conduzir, mas sem grande entusiasmo nem vontade de participarem em brincadeiras de meninas.
Com grande pose, Lurdes passava em frente deles, fingindo-se indecisa. Depois avança, ,pára em frente do irmão mais velho, que passou a ser na sua imaginação o seu príncipe, estende-lhe a mão, para que pegue nela e a conduza para a pista de dança imaginária, e diz:
— Que gentileza!...
Exactamente no mesmo tom usado pela princesa, o príncipe rejeitado, remata:
— Que “peidoco!...”
As gargalhadas divertidas da mãe contagiam os miúdos, que desatam também a rir gostosamente. Mas Lurdes não pôde deixar de se sentir levemente ressentida, por os seus irmãos lhe terem estragado o baile e a brincadeira que ela levava tão a sério…