"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

domingo, 29 de maio de 2011

O Caderno da Classe


Chegara a sua vez de escrever no caderno da classe. Era uma grande responsabilidade, dizia a professora, e tudo tinha que estar impecável, sem rasuras nem erros…
O caderno ia passando pelas mãos de todos os alunos. Todos tinham que escrever lá uma cópia, ilustrada por um desenho, um ditado, as contas, os problemas. Nada de mais…o habitual, o que se fazia todos os dias…Mas agora, era no Caderno da Classe. O peso desta responsabilidade tolhia-lhe os movimentos, e o raciocínio. O caderno era de linhas, isto é pautado, e mesmo as contas e os problemas tinham que ser feitos nas linhas. Havia regras rígidas: os números tinham que ser escritos de linha a linha, para ficarem todos do mesmo tamanho. As letras também obedeciam a normas: os “efes” tinham que ter a parte superior a tocar o extremo da linha superior, e a parte de baixo devia tocar a linha inferior. Os “éles”os “bês,” os “agás,” deviam tocar a linha superior, os "tês" e os "dês," ficavam a dois terços. De igual modo, os "guês" e os “jotas” deviam tocar a linha de baixo, e os “pés” e os “quês de aste”, ficariam na linha inferior até dois terços. O nervosismo assaltava-a, queria fazer boa figura. Felizmente que já tinha uma caneta de tinta permanente, luxo a que as outras meninas da sala não chegavam, com excepção da Carminho, filha de um industrial da terra, a única que tinha direito ao “inho” no nome, e ao beijo diário da professora. Não corria por isso o risco de que algum borrão indesejado caísse na escrita, desde que não usasse movimentos bruscos. Mas estava sujeita a outros imponderáveis: era escrava dos nervos. E, com a língua de fora, ao canto da boca, lá ia fazendo a sua tarefa. Até que parou, perturbada: o oito ficara com o arco superior ligeiramente abaixo da linha. Então, irreflectidamente, levou o aparo ao local onde se quedara o arco, e desenhou-o novamente, por cima. O resultado não podia ser pior. A professora farejava estes pequenos incidentes e já estava em cima dela, a ver a obra. E uma valente bofetada sai disparada, indo assentar no rosto de Lurdes. Ao mesmo tempo, resultado do impacto, cai um borrão de tinta grossa e azul, no Caderno da Classe. A raiva da professora explode:
— Ah! Sua grandessíssima burra! Lindo serviço!
Lurdes sente a face em brasa. As lágrimas inundam-lhe os olhos em vagas, e espraiam-se, quentes e salgadas. Recrimina-se intimamente pela falta de jeito que a levara a tentar emendar o não emendável…
A professora corre para a secretária. Lurdes aguarda com o coração a bater, o castigo que se seguirá. Mas, em vez da régua, a professora regressa com o mata-borrão que tinha sempre na sua secretária.
E, ao fim da tarde, enquanto faziam as fichas com os problemas de Aritmética, viu a professora à volta do Caderno da Classe, muito compenetrada, com o pincel e o frasquinho de descolorante com que ela emendava os eventuais erros no caderno dos mapas de faltas mensais dos alunos que enviava para a direcção escolar…

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