"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

O pão




A massa branca e leitosa era afagada e torneada pelas suas mãos, até lhe dar o formato pretendido, até ficar bem redonda, como o ventre de uma mãe prestes a dar à luz.
Os meus olhos seguiam-lhe todos os movimentos. O seu olhar emanava um contentamento cansado, presente também nos gestos. Um último esforço, para se desprender dos bocados de massa branca que lhe cobriam as mãos e os braços quase até aos cotovelos, e ajeitar a bola redonda e perfeita, que ia surgindo. Vira-a peneirar a farinha, deitá-la na masseira, aconchegá-la em monte e abrir uma cova no meio, misturar a água fumegante aos poucos e poucos, que se escapava formando pequenos regos que ela ia buscar com as sua mãos sábias, para a reconduzir àquela amálgama que se ia formando. As suas mãos penetravam na farinha, em movimentos ritmados, e ela atirara-se com ardor à tarefa de amassar aquela mistura, para cá e para lá, depois o sal, e o fermento, e mais água, e as mãos que não paravam…depois retirou um pouco de massa, que colocou numa malga à parte. A sua respiração era ofegante, mas eu sentia-a satisfeita. Com os dedos polegar e indicador da mão direita, a fazer de pinça, agarrou num bocadinho de massa, marcando-a. Era este o sinal que lhe iria permitir reconhecer o seu pão no meio de todos os outros, quando fosse a altura de o resgatar do forno comunitário. Finalmente, o último retoque, com ambas as mãos rodeando a bola. Soergueu-se. Foi traçando uma cruz com a mão direita em riste sobre aquela barriga, ao mesmo tempo que dos seus lábios saía a oração ritual:
— Deus te acrescente e te livre de má gente. Nossa Senhora da Conceição te faça um formoso pão.
Depois seguiu-se a lavagem das mãos, e a masseira foi coberta com um panal de linho. Por cima, um cobertor de lã, para que se mantivesse quente e levedasse. Agora era preciso aguardar que, sob o panal, a oração se consumasse no crescimento do pão. Era preciso que o pão levedasse, o que iria levar cerca de duas horas, mas, até poder ser saboreado, ainda tinha que atravessar um longo processo: a forneira de um dos fornos comunitários viria buscar a masseira, e levá-la-ia à cabeça, assente numa rodilha, até ao forno, onde cozeria durante uma hora. Entretanto, já a minha mãe teria chegado, para talhar a massa em boroas, que iriam ser bailadas nas tigelas pelas bailadeiras, conferindo-lhes o aspecto arredondado. Num forno havia três a quatro bailadeiras, que eram pagas por cada freguesa (chegavam a ser vinte de cada vez), com um pedaço de massa, assistindo-lhes também o direito de rapar e lavar as masseiras, cuja lavagem se destinava a alimentar os porcos.
O forno estava agora pronto. As brasas iam sendo distribuídas pelas braseiras de zinco, trazidas pelas mulheres, que aguardavam pelo conforto que aquelas brasas trariam às suas casas. No interior daquela bocarra escancarada sumiam-se uma por uma as bolas brancas, depositadas com o auxílio de uma grande pá pela forneira, e que sairiam transformadas em deliciosas boroas. Aos meus olhos de menina atenta, nada disto passava despercebido, e eu tudo registava.
Algumas mulheres por ali ficavam, aguardando a cozedura do forno. Outras regressavam a casa, voltando uma hora depois para identificar o seu pão. Algumas horas atrás, andara a forneira pelas ruas da aldeia, apregoando, em altos brados:
— Ó Ermeliiiiiinda! Huuuuuu! É pr´á amassar!
E os seus gritos ouviam-se por toda a aldeia. E, àquela ordem, cada uma das mulheres assim invectivadas, se recolhia ao seu lar cumprindo o papel que lhe competia na tarefa sagrada de conceber o pão que iria alimentar a família.
Enquanto no forno as bailadeiras bailavam as boroas das suas freguesas, em casa outras mulheres estariam a acabar de aprontar a massa para a fornada seguinte.
O calor do forno, o momento de reunião, de espera descontraída, eram propícios à partilha de ditos e mexericos, desnudava-se a alma, desvendavam-se segredos, que aproximavam ou afastavam as comadres… Era digna de se ver a entrega do pão.
— Belisco e buraco! — gritava a forneira!
— É meu! — respondia a dona.
— Belisco, belisco!
— É meu!
— Ferro!
— Esse é o meu!
E, assim sucessivamente, o pão quente ia sendo entregue e desaparecendo debaixo do panal branco que cobria as masseiras de cada dona de casa.
— Ó Maria do Carmo! Empresta-me uma boroa, que eu já só cozo para a semana!
Quando a masseira regressasse, com boroas quentes, castanhas, cheirosas, redondas, de côdea consistente, era altura de proceder à sua distribuição pelas vizinhas que as haviam emprestado, ou de emprestar a quem já não tivesse. Desta maneira, através de uma relação de boa vizinhança e de hábil gestão, se garantia o consumo do pão relativamente fresco. Quando estava a acabar, havia sempre quem emprestasse, ou pagasse, uma boroa proveniente de uma fornada mais recente.


domingo, 26 de dezembro de 2010

A ti...


Mal acordei, senti um apelo interior e uma vontade enorme de regressar à velha casa outrora tão animada e agora abandonada às suas memórias.
O percurso que me separa da tua casa, cerca de sessenta quilómetros, foi feito com o pensamento em ti e uma grande paz interior a apossar-se gradualmente de mim, à medida que me ia aproximando da povoação.
Mal cheguei, distribuí dois beijos pelas faces da minha mãe e fui direita ao assunto.
— Mãe, dá-me as chaves da casa da avó, Quero lá ir.
Os olhos da minha mãe não puderam esconder a surpresa que aquele inesperado pedido lhe causou.
— Queres?! Espera aí, que eu vou contigo.
Olhei-a demoradamente, nos olhos, e disse:
— Não, mãe, quero ir sozinha. Dá-me as chaves.
Quando as chaves me passaram para a mão apertei-as e lá fui.
É quase com uma certa religiosidade que abro a porta exterior, ultrapasso o patamar de granito do rés-do-chão agora criminosamente coberto por cimento pintado de vermelho. Quando nos mudámos da casa da praça com tantas escadas e sem elevador, para o andar de baixo do casarão, concluiu-se que a tarefa de o esfregar uma vez por semana para o manter apresentável, era demasiado árdua para a minha mãe, a convalescer de uma pleurisia, que a atirara para um hospital durante quase um mês, e já sobrecarregada com a casa, os cuidados exigidos por três filhos pequenos…Dou a volta à chave que abre a porta que dá acesso à tua casa.
À minha frente ergue-se a velha escadaria de madeira, onde todos os meus irmãos e primos tiveram o seu baptismo caindo por ela abaixo em bebés, com excepção do Cassiano, o filho mais novo da tia Laurinda, sempre tão prudente e cuidadoso.
Então olho para cima e consigo ver-te, ao cimo das escadas, aguardando-me a tua figura simples, curvada pelo peso dos anos, mas com uma majestade e um brilho a espreitar-te nos olhos, ainda que parcialmente toldados pelas cataratas.
Apesar de conseguires identificar-nos pela voz, não resistias, e as tuas mãos percorriam-nos a cara, os braços, as mãos, tudo isto acompanhado por um sorriso nos lábios e no olhar, ao mesmo tempo que soltavas interjeições de prazer pela visita:
— Bom bem! Bom bem!
Agarro-me ao corrimão preto de ferro, que sempre conheci a querer soltar-se da parede, mas que foi resistindo, e ainda hoje lá permanece, na mesma, enfrentando a passagem dos anos e gerações. Vou contando um a um os degraus, agora adormecidos, votados ao esquecimento por aquelas mãos que durante anos e anos, ciclicamente, na altura das festas, as torturavam com o esfregão de arame, retirando-lhes o resto da antiga cera e as afagavam depois, com a cera nova, e as faziam ressurgir brilhantes, luminosas, após a passagem do lustro, afanosamente puxado até à exaustão.
No cimo do patamar, abro a porta à direita, e a sala-vestíbulo de soalho de longas tábuas carcomidas, estende-se à minha frente. É desta sala que guardo gratas recordações da minha infância. É uma sala luminosa, onde a luz jorra livremente pelas largas janelas de guilhotina, e pelas bandeiras da porta que se abre para um balcão de granito, que dá acesso ao jardim.
Ao fundo, a porta que acede ao teu quarto, e, à direita, mais duas portas: uma para a dispensa, outra para a sala de jantar, que comunica com o quartito onde eu dormi tantas noites, e com o outro quarto, mais amplo, que acolheu os meus pais quando se casaram, e onde nasci eu e os meus dois irmãos. Nesta sala passeiam os vultos que outrora a preencheram. Consigo ver-te, sentada naquela tua cadeira, a porta do quintal aberta, deixando passar uma larga faixa de luz que se desenha no chão. E tu, de preto vestida, penteias os teus longos cabelos, que depois entranças e enrolas num carrapito.
Os sons ecoam aos meus ouvidos. A minha mãe está sentada à máquina de costura, por baixo da janela, o tecido corre guiado pelas suas mãos hábeis e o rumorejar da máquina é para mim apaziguador.
Chegam-me os ruídos longínquos das conversas entre os vizinhos, cujas paredes traseiras das casas delimitam o jardim, o cacarejar das galinhas, e o arrulhar das pombas no pombal que o meu pai construiu. No balcão de granito, grandes manchas coloridas de sardinheiras…Ouvem-se cantares…
Deitada de barriga para baixo no chão da sala, de saia curta, camisola vermelha, ambas confeccionadas pela minha mãe, faço a cópia que, no dia seguinte, apresentarei à aprovação de uma professora exigente, autoritária e de humores imprevisíveis.
A felicidade que naquele momento me enche a alma é inexplicável…
Esses dias claros que então entravam pela tua casa, e se estendiam, intermináveis, perdidos nas melopeias por ti ciciadas enquanto entrançavas os teus longos cabelos mareados de branco, e na música entrecortada da máquina de costura habilmente comandada pela minha mãe, não mais os encontrei tão belos, tão claros, tão intermináveis…
Posso agora reconhecer, o quanto fui feliz na tua casa, querida avó!