"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

sábado, 30 de outubro de 2010

Avó e neta




A casa da avó era como a maior parte das casas da aldeia: embora tivesse electricidade, não possuía água canalizada nem esgoto.
Era preciso ir à fonte acartar a água que corria livremente e encher os baldes e os cântaros de folha-de-flandres tantas vezes quantas as necessárias. A higiene pessoal limitava-se à lavagem diária da cara, mãos e pescoço, com a água fria que ficava de reserva nos jarros dos lavatórios de esmalte. Aos domingos, a água a ferver nos depósitos dos fogões a lenha, vertia-se nas enormes bacias de zinco onde se tomavam os banhos. As necessidades faziam-se nos bacios, que eram esvaziados para os baldes que todos os dias de manhã era necessário ir despejar à ribeira. A roupa era também lavada na ribeira, e constituía para a maior parte das raparigas da aldeia uma ocasião para porem a conversa em dia, falarem dos seus conversados, efectivos ou sonhados. As mulheres casadas, quando o tempo o permitia, levavam as crianças, que se entretinham na brincadeira umas com as outras, com a água até aos joelhos, chapinhando, ou na caça de bordalas e rãs.
A mãe de Lurdes lavava a roupa em casa, num tanque de cimento, acompanhando os tempos modernos…Mas quem geralmente ia despejar os baldes à ribeira, era a avó. Lurdes sentia o apelo da rua, para onde adorava esgueirar-se … Mas a mãe vigiava-a. Por isso, sempre que a avó punha a rodilha à cabeça e ajeitava o balde para se dirigir à ribeira, vinha o pedido insistente:
— Também quero ir! Deixe-me ir consigo, avó!
— Deus te livre! Podes por lá cair!
E os pedidos de Lurdes caíam em saco roto. Mas ela não desistia, e, sempre que dava conta daquele ritual, lá estava ela, fazendo marcação cerrada à avó.
— Deixe-me ir, avó! Eu não caio! Eu porto-me bem! Eu não saio de ao pé de si. Eu já sou uma mulher, avó, pois não sou?
Lurdes sentiu uma ligeira hesitação na avó.
De facto a avó, dorida pelo muito trabalho que a filha ainda tão nova e já com três filhos levava, tentava incutir alguma responsabilidade naquela neta, dizendo-lhe que já era uma mulher, e que tinha que ajudar a mãe.
Lurdes insistiu:
— Já sou uma mulher, não sou, avó?
— Pois és, já és uma mulherzinha, és ! — confirmou a avó com um largo sorriso.
O sorriso largo que viu na avó deu-lhe a certeza de que tinha vencido aquela batalha. — Então está bem. Mas não sais de ao pé de mim! Vai lá dizer à tua mãe que vais comigo.
E Lurdes lá foi, escapando-lhe a alegria nos saltos, nos gritos, que nem as recomendações insistentes da mãe conseguiram esmorecer.
A avó desceu cuidadosamente as escadas com o balde à cabeça, seguida pela neta. Uma vez na rua, exigiu agarrar a mão da miúda. A rua era íngreme, em calçada romana, e a pressa não era nenhuma. A garota falava pelos cotovelos, de tudo e de nada. A avó divertia-se com as saídas de neta, mas o carrego que transportava, obrigava-a a manter o pescoço bem erguido, e alguma concentração. Ao fundo da rua viraram à direita, depois à esquerda, encaminhando-se para a ribeira do Regato, cujas águas serviam de força motriz à fábrica de malhas. O caminho não era longo, mas o piso era irregular. Algumas pedras da calçada estavam polidas pelo desgaste dos pés que as calcorreavam e pela erosão, como se carinhosamente afagadas por mãos desveladas. Outras, mais resistentes aos agentes erosivos, apresentavam-se aqui e ali mais bicudas e rugosas.
Lurdes não cabia em si de contente. E a avó ia pensando que, afinal, a companhia da neta amenizava o cumprimento de uma obrigação tão pouco agradável.
Nenhuma das duas conseguiu explicar, mais tarde, o que se passara.
Aconteceu muito rápido. Num ápice, Lurdes viu a avó caída por terra, e viu-se a gritar, como se não fosse ela, nem a voz lhe pertencesse. A avó gemia, apenas, baixinho, como se receasse acordar alguém. O balde de esmalte azul, rebolara pelo chão, a tampa rolava rua abaixo, a afastar-se daquela cena grotesca. A cara da avó, a roupa, as pernas os braços, estavam cobertos por um líquido castanho misturado com substâncias de consistência mole e esponjosa, de cheiro nauseabundo. De repente, vindas de vários cantos, juntaram-se algumas mulheres, solícitas e caridosas.
— A minha neta…levem-na a casa! Avisem a minha filha!
Lurdes sentiu-se agarrada. Alguém lhe pegou ao colo. Quando mais tarde tentou reconstituir o que se passara, foi incapaz de se lembrar de quem lhe pegou, quem a levou a casa, a reacção da mãe…
Decorrido algum tempo, entrou devagarinho no quarto da avó, às escuras depois da visita do médico que lhe tratara as escoriações, diagnosticara um braço partido, e recomendara repouso. Subiu para a cama, cobriu a cara da avó de beijos, que a rodeou com o braço são. Estendeu-se ao seu lado. Nenhuma das duas disse uma palavra. Foi aí que a mãe a foi encontrar mais tarde, agarrada à avó, a dormir. E foi aí que Lurdes acordou na manhã seguinte.

domingo, 24 de outubro de 2010

E ela sonhava...




Cresceu protegida pelo olhar super atento da mãe. Até à idade de entrar para a escola, não lidou com outros miúdos que não fossem os irmãos. A primeira infância passou-a ela com os familiares que viviam debaixo do mesmo tecto, entre as brincadeiras dos irmãos, o carinho da mãe, da avó materna, da tia-avó, e dos primos, tios e avós paternos, que constantemente se visitavam.
Os garotos da sua idade passavam a vida na rua, brincado uns com os outros, mergulhando os pés descalços na água que corria livremente pelos regos… A vida ao ar livre lia-se nas manchas que o sol lhes marcava na pele, nos cabelos crespos, revoltos, indomáveis, incompatibilizados com o pente, nas calças arregaçadas, maiores que a cintura que as transportava, ajustadas com baraços de sisal ou de algodão, ou tiras de farrapos cruzadas no peito, a fazerem de suspensórios… Crescia-lhes a liberdade nos olhos, nos gestos, nos risos…
Os seus domínios eram a rua e neles reinavam, desde o nascer ao pôr-do-sol. Era então que eles iam desaparecendo, um por um, sem deixar rasto, ao som de gritos que, como o vento, esquadrinhavam os escaninhos das vielas, e até eles chegavam. Gritos que eles reconheciam com poder, gritos que cada um identificava e reconhecia como sendo dirigidos a cada um, gritos que os reconduziam a casa, gritos carregados de ameaças, castigos, pobreza, sofrimento, suor…
E cada nome gritado tinha o condão de reduzir cada pequeno rei das ruas à plebeia condição de filho, neto, sobrinho, irmão…
Ela não tinha autorização para ficar na rua. Por vezes atravessava a praça em direcção à srª Elvira, com os dois tostões bem apertados na mão com que comprava uma romã, mais pelo fascínio daquela fruta misteriosa do que pelo prazer de a comer. E ficava ali a vê-los, desejosa de se juntar a eles, perdida no tempo… A cantiga da água a correr, e o desejo de nela mergulhar os pés, caminhando descalça pelos regos, era como a melodia encantatória das sereias a tentar Ulisses e os seus companheiros…Quando por fim a procuravam, já ela estava descalça, tentando a aproximação ao grupo. E, sem palavras, apontava para os meninos. A resposta era invariavelmente a mesma “ os meninos andam descalços porque não têm sapatos, os meninos andam na rua porque não têm dono”…
E ela sonhava que um dia, também não teria dono…