"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

O cheiro da chuva




Acordo com a chuva a cair pelos beirados ruidosos, e os teus passos que, pelo soalho, se movem cautelosos. É puramente retórica a pergunta que te faço, velada ainda pelas nebulosas brumas de Morfeu. Chove, sim! Reconheço-a ruidosa e imparável, sobrepondo-se a qualquer outro som. É domingo. Aperto o edredão à volta do meu corpo e volto-me para o outro lado. Vou dormir mais um pouco, embalada pelo trepidar da chuva no aconchego da cama…
Começa a instalar-se uma dorzinha sub-reptícia bem lá no fundo… Agora é já impossível ignorá-la. Num gesto brusco, afasto a roupa e salto da cama.
Chego à janela, e os meus olhos seguem os volteios caprichosos e inusitados das gotas de água em acrobacias atrevidas pela vidraça fria. A luz, a alegria, o mar, a praia, as caminhadas, o calor, o aconchego, ficam para além da cortina prisioneira e ininterrupta, que me cerceia a liberdade... É com uma sensação de dor física e mental, de abandono, que recebo a chuva...É um sentimento que não consigo evitar, que me acompanha desde criança…
A garota franzina luta para atravessar a avenida desguarnecida de casas, ladeada de árvores e por duas ribeiras que, correndo do alto da serra, lançam as suas águas com estrepitoso fragor, saltando por cima das rochas que lhes barram o caminho. A garota vai a caminho da escola, que fica na encosta da aldeia. Tem que atravessar a povoação, a avenida, e, depois de longa caminhada, deixar para trás as casas e começar, finalmente, a subir a encosta, onde, lá no alto, se vislumbra a escola. Chove desapiedadamente. Ela traz uns botins pretos de borracha, uma gabardina de plástico e um guarda-chuva azuis. A avenida é o local mais temido para galgar, desabrigado, onde o vento sem quartel assobia assustadoramente. A água e o vento parecem ter encontrado na cachopita frágil, motivo de entretenimento. O vento rouba- lhe o guarda-chuva, e brinca com ele a seu bel-prazer, deixando-a completamente desprotegida, com o seu coraçãozinho assustado batendo descompassadamente. A chuva escorre pela gabardina de plástico, procurando-lhe fragilidades. Entra pelas costuras, penetra pelo colarinho, encontra o pescoço da menina, e as gotas geladas desenham-lhe caminhos na pele, entranham-se-lhe nos ossos. Junto aos joelhos, também as gotas de água caem pela orla da gabardina, invadindo o interior dos seus botins de borracha, deixando-lhe os pés ensopados. Os cabelos colam-se-lhe ao rosto, tapam-lhe a visão, e as lágrimas misturam-se com a chuva. Finalmente consegue agarrar o guarda-chuva, torto e imprestável. Aperta-o bem, com as suas mãozitas pequenas e geladas. A saca com os livros, já encharcada, marca-lhe de vergões vermelhos as mãos, com o esforço para a não largar. O temor de ter que mostrar a lousa ilegível acicata-lhe o mal-estar. Sente-se pequenina e abandonada. A lembrança da mãe provoca-lhe um acesso de choro quase incontrolável.
Num gesto decidido, afasto aquelas memórias.
Não! Nunca fui capaz de apreciar a chuva. E as chuvas das trovoadas acendem-me medos secretos e inconfessáveis…
Aprecio o cheiro a terra molhada, quando os agricultores abrem os sulcos na terra grávida, que, receptiva e apaixonada, se deixa penetrar pela água, numa união sagrada. Aprecio o cheiro a terra molhada, quando começa a transpirar e o vapor se evola dela, vestígio da passagem da chuva e da sua partida, mesmo que temporária, e o sol beija e fecunda a terra.
Mas a chuva que cai em cordas, fria e ininterruptamente, melando as árvores e as flores do meu quintal, encharcando a terra até à exaustão, gela-me a alma, pesa-me no coração.