"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Dor


Apercebo-me de que as feridas ainda sangram quando a rispidez e a impaciência são moeda de troca para as naturais procupações de uma mãe. Passeio-me então nos versos de há quase uma década. E esta adolescência intemporal e desencaixada, ao invés de partir, vai enterrando as suas raízes e é uma pedrada de sangue sem esperança nas minhas ilusões.


Meu menino,
Meu amor...
Quem veio roubar
A luz que brilhava
No fundo do teu olhar?
Quem veio roubar
A confiança cega
Com que teus passos
Corriam
Para os meus braços?
Quem veio roubar
O caminho
Que te conduzia até mim?

Os passos inquietos
Que teus medos nocturnos
Conduziam ao meu leito,
Ainda ecoam em mim...

A melopeia da cantiga
Que te entregava
Ao sono tranquilo,
«Vai-te coca, vai-te coca,
Pelas telhas do telhado,
Deixa dormir o menino
O soninho descansado…»,
Ainda ecoa em mim...

Olha,
Tenho o meu colo cheio
Do vazio que nele deixaste...
Tenho a saudade a crescer
Dos dias em que me ouvias...
Tenho o peso das palavras
Que te digo,
E não ouves...
Tenho a indiferença
Dos olhares
Que me olhas...
Tenho a arrogância
Dos sorrisos
Que me devolves...
Tenho a cortina
Dos silêncios
Que nos envolvem
Qual nevoeiro denso
Que sobre a praia se abate...

Bato à porta do teu coração,
Mas está fechado...
E as tuas palavras
São duras
E impacientes...
E queimam
Minha alma
Como espadas de gelo...
Mas o meu amor por ti,
Não diminuiu...
É um amor magoado,
É um amor dorido,
É um amor expectante...

Um dia encontrarás o caminho
Que conduzirá teus passos
De novo até mim...

Eu sei...
Agora precisas de voar,
Experimentar
A força das tuas asas,
E planar
Em direcção a outros horizontes...

Mas tenho medo...
Tenho medo
Que ainda não estejas preparado,
Tenho medo
Que alguma das mágoas
Que te fazem crescer,
Te façam perder de ti...

Ouve,
Eu não vou a lugar nenhum.
Espero-te,
Para te abraçar,
Quando o momento chegar...
Tu serás sempre
O meu menino...
Eu serei sempre
A tua mãe.

POR ONDE ANDA

Por onde anda
O teu coração
Que era para mim?

Por onde anda
O sorriso que jorrava
Dos teus lábios,
Que era para mim?

Por onde anda
O brilho que dançava
Nos teus olhos negros,
Que era para mim?

Por onde andam
As palavras fartas e imparáveis
Que eram para mim?

Por onde andam
Os teus carinhos fáceis
Que eram para mim?

Por onde anda
A ternura
Com que estendias
Os teus braços infantis?

Não reencontro
O teu sorriso
No sorriso trocista,
Que é para mim.

Não reconheço
A raiva que chispa
No teu olhar
Para mim


Não reconheço
As tuas palavras agrestes
Lacónicas irónicas
Para mim

Não reconheço
O azedume fácil
Para mim...

Não reconheço
Os teus braços caídos
Para mim.

Em que parte do percurso
Me largaste
Que eu não percebi?

Que foi que te fez colocar
A raiva
A indiferença
O azedume
A arrogância
No lugar da ternura,
Da meiguice
Da doçura,
Da solicitude,
Do amor?
Por onde anda o teu coração,
Que também era meu?

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

História com final feliz




O começo de mais um ano lectivo. Na primeira aula, fito, um por um, os rostos dos meus meninos do ano passado. Mais espigadotes, sobretudo as raparigas, mas nem todos necessariamente mais maduros. Ao fazer a chamada pela pauta, dou conta da correcção de um hiato que existiu durante todo o ano lectivo passado. E a história do Zé ocorre à minha memória. Este foi o texto que, no ano passado escrevi, e que agora lhe dedico.

No início de cada ano lectivo fico sempre na expectativa, relativamente aos novos alunos que me serão entregues. Este ano não foi excepção, tanto mais que iria pegar em turmas do 5º ano, uma vez que os meus meninos do ano passado e que recebi também no quinto ano, estão agora no sétimo, feitos uns homenzinhos e umas senhoras, em plena adolescência uns, outros a entrar nela…
É extremamente gratificante e um motivo de satisfação pessoal, quando passo nos corredores da escola e sou saudada calorosamente por quase todos eles, dado que alguns são menos dados a manifestações exteriores. Mas, mesmo assim, saúdam-me, mais timidamente, como é compreensível.
A adaptação destes meninos é quase sempre dolorosa…São muitas mudanças para assimilar de uma assentada… espaço novo, enorme, para quem estava restringido a pouco mais de quatro salas, obrigação de mudar de salas consoante a disciplina, ter de consultar um horário, disciplinas diversas, vários professores, cada um com as suas particularidades, passar apressadamente os registos do quadro, antes que eles sejam apagados, funcionários novos, passar cartão para entrar na escola, passar cartão para sair, fila para ir ao bar, fila para o refeitório, matulões a passarem à frente na fila, a pregarem rasteiras nos corredores, ter que engolir a raiva em seco, senão… ter que comer tudo o que está no prato, quer se goste ou não, “quem não gosta come menos ou vai comer a casa”, sob risco de ficar no refeitório indefinidamente até o prato estar limpo…
Para todas estas situações fiquei mais sensibilizada quando os meus próprios filhos passaram por lá…Vi o que até ali me passara ao lado…Vi as coisas pelos olhos deles, auscultei-lhes as dores como mãe…
Mas voltando aos meus novos meninos…
Nos primeiros dias olhei-os nos olhos, consciente de que a empatia é muito importante para poder prosseguir esta missão…falei com eles sempre sorrindo, quis saber coisas deles…
Procurei cumprir aquilo a que me proponho sempre: fixar-lhes rapidamente os nomes, o que, dado a memória não estar a ficar mais célere, de ano para ano é mais difícil…
Nestas primeiras abordagens fui-me apercebendo não só das fragilidades de alguns deles, como também das idiossincrasias que necessitam de ser contornadas. Este ano, os meninos são mais infantis, não cumprem regras, dispersam-se facilmente, não ouvem o que lhes é pedido, interrompem a aula com perguntas a questões que acabaram de ser explicadas, falam todos ao mesmo tempo, não aguardam a sua vez para falar… Sai-se de uma aula como se se tivesse acabado de correr uma maratona…Mas não podemos ficar indefinidamente a insistir nas regras… é preciso avançar com o desenvolvimento das competências específicas de cada disciplina…
Há dias o Zé não estava na aula. Quando perguntei por ele, disseram-me que estava maldisposto, e tinha ido beber um chá.
Mais tarde a directora de turma falou comigo: miúdo muito sensível, com dificuldades em adaptar-se…Já tinha passado na psicóloga, que conversara com ele.
Na aula seguinte, o Zé já estava bem. Óptimo!
Passados dias, a directora de turma, no intervalo, mesmo antes da minha aula, chamou-me de parte: o Zé chorava que nem uma Madalena, lágrimas gordas e sentidas…a aula seguinte era comigo…
Quando cheguei ao fundo das escadas, lá estava o Zé, chorando, “por causa dos nervos,” como, com a voz entrecortada, explicou.
— Ó Zé, eu percebo que estejas nervoso, mas olha que não há motivo para isso! Vá, vamos lá! — e, rodeando-lhe os ombros, cometi uma infracção, conduzindo-o pelas escadas que são vedadas aos alunos.
— Vamos por aqui para ser mais depressa, mas olha que os meninos não podem passar por aqui! Bom, mas como estás comigo, e para não deixarmos os teus colegas à espera, vamos lá.
O Zé subiu comigo e, decorridos uns momentos na aula, parecia que nunca se tinha passado nada.
Entretanto fui sabendo de várias situações que se repetiram com outros professores, e noutras aulas. Passado quase um mês de aulas, “o nosso Zé”, como dizia a directora de turma, continuava a sofrer dos nervos de inadaptação. A mãe veio buscá-lo algumas vezes sem ter acabado o período de aulas, a psicóloga conversou várias vezes com ele, a directora de turma a mesma coisa. Voltou a repetir-se a cena com o Zé ao fundo das escadas à minha espera. Os olhitos dele, inundados pelas lágrimas, lembravam os de um cachorrito que pede mimos ao dono E, mais uma vez, fui reincidente na infracção ao Regulamento Interno, para bem do Zé.
Por vezes apercebia-me das conversas durante os intervalos entre o garoto e a directora de turma. Um dia vi a mãe do Zé largá-lo à porta da escola, e arrancar sem olhar para trás—coitada da senhora! — enquanto o corpito franzino do Zé, sacudido por soluços e rosto lavado em pranto, se arrastava penosamente para dentro dos portões.
Nos dias em que o Zé conseguia ser mais forte do que os nervos, eu dava-lhe os parabéns. Já todos sabíamos que o Zé gostava da escola, dos funcionários, dos colegas, dos professores, mas os nervos dele é que não queriam saber disso para nada.
Um dia a directora de turma, num desses dias em que resolvera acarinhar ainda mais o miúdo, e tirando partido do facto de a disciplina por ela leccionada, Religião e Moral, ser perfeitamente propícia a uma descontracção de que as disciplinas curriculares não beneficiam, andava a passear com ele pelo átrio da escola, tentando que o Zé esquecesse os nervos e arrancar-lhe algumas gargalhadas, ou, pelo menos, alguns sorrisos. A colega, que é uma pessoa extraordinariamente bem-disposta, de personalidade histriónica, fazia uso dos seus dons performativos. Ao passarem por uma sala do rés-do-chão onde se leccionava uma disciplina de EVT, cujas janelas estavam abertas, de que se havia de lembrar a professora? Apercebeu-se quem eram as colegas que davam aulas na sala e pensou que elas não lhe levariam a mal, uma vez que era por uma boa causa. Disse para o rapaz:
— Ó Zé, vamo-nos esconder e vamos pregar um susto a esta malta.
Agacharam-se, encostadinhos à janela, e, a um sinal da DT levantaram-se ao mesmo tempo, e gritaram para dentro da sala:
— Huuuuuuuuuuu!
Lá de dentro, vem um grande rebuliço, e, descomandados, os alunos vêm à janela. A directora de turma, ri, juntamente com o Zé, e o resto dos alunos. As professoras assomam à janela e repreendem, bem-dispostas, a colega:
— Estas maluquices só tuas!
Mas algo se passa. O Zé, de olhos bem abertos, como se refém de uma descoberta inexplicável, murmura, preso de um encantamento que comoveu até às lágrimas a sua professora:
— Os meus colegas! …
— São os teus colegas da escola primária, Zé? — confirma a professora. O Zé não tem palavras. Diz que sim com a cabeça, enquanto um sorriso tímido lhe aflora o rosto.
É então que a professora toma uma decisão. Entra pela sala adentro, dá duas palavras às professoras de EVT, e deixa o Zé na sala, na companhia dos seus colegas e sob a supervisão das professoras da turma, que logo distribuem uma tarefa ao miúdo. Dirige-se ao gabinete do Director. Dali vai fazer um telefonema à mãe do Zé, e, passando por cima do parecer da psicóloga, que opinava que não se deviam fazer as vontades ao garoto, que ele iria ultrapassar e a sua autonomia sairia reforçada ( o que certamente acabaria por acontecer, não sabemos a que custo), põe-se a mexer os cordelinhos para que o Zé possa juntar-se aos seus colegas.
Hoje tive uma boa notícia. O Zé já não faz parte dos meninos da minha turma. Mas anda por aí, e veio engrossar o grupo daqueles que, não sendo já meus alunos, me saúdam com entusiasmo.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Os sótãos da minha vida





Sempre tive uma predilecção muito especial por sótãos ou águas-furtadas desde pequena.
Atrai-me a descoberta do inesperado, das velharias guardadas, como se na decisão de guardar essas velharias se pretendesse guardar o tempo que a sua contemplação evoca, mantendo a secreta esperança de que algum dia elas possam ser insufladas de vida, e descoberta para elas nova utilidade.
É essa esperança que as mantém a salvo de algum dia poderem ser atiradas para o lixo.
O sótão da casa da minha avó paterna era diferente do da minha outra avó. Era um sótão cujo soalho era de tábua corrida, luminoso, onde se podia ficar em pé e cheirava a limpo e a maçãs.
Da única vez em que lá subi, fiquei deslumbrada...Era um sítio óptimo para se estar, para brincar, para ler...Mas eu só ia a casa da minha avó de visita, aos domingos à tarde, no domingo de Páscoa, que era obrigatório, sob pena de termos de enfrentar a sua fúria. Nos outros dias, vi-a com frequência, mas na minha casa, onde ela ia dar dois dedos de conversa, os quais culminavam invariavelmente com uma merenda em que a bebida de eleição era o chá.
Nunca tive com ela a mesma confiança que tinha com a minha avó materna. Era uma relação quase cerimoniosa. Por isso, quando ela nos oferecia alguma gulodice, devíamos sempre recusar educadamente.
— Não, obrigada!
E só depois de ela insistir, é que nos atrevíamos a estender a mão para o que ela nos apresentava.
Daí que nunca me tivesse sido permitido explorar devidamente aquele sótão, de onde se vislumbrava, através de um pequeno postigo rasgado no telhado, um belo pedaço de céu azul.
O sótão da casa da minha avó materna, ou desvão, como ela lhe chamava, era um lugar sombrio, cheio de teias de aranha, pó e inutilidades...E a minha avó ficava possessa, quando descobria que nós andávamos por lá...
Na altura não percebia esta rezinguice dela...Só mais tarde é que entendi que o receio dela era que enfiássemos algum pé pelo sobrado velho e carcomido, e viéssemos a estatelar- nos, sem vida, no chão de granito da cozinha...
É que a casa onde vivíamos era de facto muito velha...O meu avô comprara-a com o dinheiro que amealhara no Brasil, e tinha intenções de a recuperar, colocando-lhe uma placa e um terraço...Mas a morte arrebatara-o, sem que tivesse levado a cabo esses seus intentos, e também sem nunca ter feito as pazes com a família que aqui ficara em Portugal. Quem sabe se, algum dia, algum dos seus descendentes chama a si a tarefa de procurar nessas terras longínquas brasileiras, os seus restos mortais?
Outro sótão que fez as minhas delícias em pequena, foi o da casa da praça, para onde nos mudámos quando deixámos a casa da minha avó materna, onde os meus pais viveram desde que casaram, até ao momento em que decidiram, finalmente, cortar o cordão umbilical e irem viver com a família para uma casa com condições mais adequadas à de alguém que aspira subir na escala social. Era um sótão enorme, amplo, com as telhas à mostra, com enormes caibros de castanho, que suportavam a estrutura de toda a casa. A luz natural entrava por telhas de vidro. Tinha uma parte central com um pé direito que permitia que se caminhasse nele à vontade, com o soalho em tábua corrida, e onde havia uma pequena divisão com o tecto forrado a madeira, que servia de quarto de criada. Aí dormiu a Laurinda, cachopa que ajudava a minha mãe nas tarefas domésticas, e era também, amiúde, nossa companheira (minha e do meu irmão) nas brincadeiras, cujo palco privilegiado era aquele sótão que tão bem se prestava ao desenvolvimento das nossas imaginosas aventuras. De facto, os espaços esconsos do sótão eram, nalguns recantos, tão estreitos e apertados, que o acesso a eles só a nós, crianças, era possível, e muitas vezes a poder de rastejarmos por entre os pequenos intervalos. Se levantávamos a cabeça, arriscávamo-nos a juntar mais uns galos à colecção...
Às vezes vinha juntar-se às nossas brincadeiras o Zé Pereira, colega e companheiro de carteira do meu irmão. Era um rapazinho educado, o filho mais novo do sapateiro, órfão de mãe. Um dia fui encontrá-los enfiados num dos tais recantos a que só nós, pelo tamanho dos nossos corpos, tínhamos acesso. Rastejei até junto deles. Estavam tão absortos, que nem deram pela minha chegada. Quando me viram, mostraram-se desagradados, o que aguçou o meu apetite. Queria ver o que eles estavam a ver, e que lhes causava aqueles risinhos. Estavam debruçados, lado a lado, espreitando para baixo. Pude então constatar tratar-se de uma abertura no tecto do sótão do andar de baixo, que se destinava a deixar passar a luz que penetrava pelas telhas de vidro do nosso sótão. Era o quarto da criada da senhora que morava por baixo de nós, e que era nora do nosso senhorio. Reconheci aquele espaço por já lá ter estado, pois muitas vezes eu descia até ao andar de baixo, atraída por aquela senhora citadina e bem cheirosa, que era em tudo diferente das mulheres que eu conhecia: usava cabelos compridos com uma fita larga na cabeça, “leggings”, camisolões coloridos de malha grossa que ela própria tricotava, e que lhe chegavam quase aos joelhos, “maquillage”, e falava à lisboeta. Aí eu era sempre bem recebida, tanto pela senhora, que não tinha filhos e me achava graça, como pela sua criada.
Naquele momento, em baixo não estava ninguém, mas não sei se aqueles dois malandrecos não teriam assistido a alguma cena que não deviam, dado os risinhos palermas e os olhares cúmplices que eles trocavam.
Também o tecto nos oferecia refúgios que eram inexpugnáveis à estatura dos adultos. Os espaços que havia entre as traves mestras de enormes dimensões e o telhado, permitiam que aí nos esticássemos ao comprido, sem sermos vistos por quem olhasse de baixo para o tecto. Éramos como macacos, subindo pelos pilares e pendurando-nos das traves de cabeça para baixo. Numa das traves havia o meu pai ajeitado uma corda amarrada a um pneu velho, que nos servia de baloiço. Outras vezes estendíamo-nos no chão, e, através das fisgas do soalho, víamos a nossa mãe que, na cozinha, se ocupava das tarefas domésticas. Chamávamo-la, e ela, com uma entoação de voz surpresa, fingia não saber quem lhe falava e de onde lhe falávamos, o que nos deixava realmente convencidos de que tínhamos conseguido pregar-lhe uma partida. Esse foi para mim um tempo fantástico! Era a altura em que eu era a companheira de brincadeiras do meu irmão mais velho. Eu esperava ansiosa que ele chegasse da escola para nos entregarmos aos nossos folguedos. Nos dias chuvosos, ficávamos ali, a ouvir a chuva martelar no telhado, a vê-la escorrer pelas telhas de vidro, e a brincar às escondidas...Eu era perfeitamente feliz, pois a ansiedade provocada pela escola, período que veio a revelar-se tão traumatizante para mim, ainda não tinha vindo perturbar a despreocupação da infância. Nessa altura o meu irmão mais novo era ainda muito pequeno para participar neste tipo de brincadeiras. Sofria, desde pequeno, de enxaquecas que o deixavam muito prostrado, e, por isso, quase não saía debaixo das saias da minha mãe. Era muito conversador, e entretinha-se muito com ela. Quando o meu irmão mais velho saiu de casa para ir estudar, ficando interno num colégio e vindo a casa apenas nas férias, sofri com esta separação. Foi então que me voltei para o meu irmão mais novo, por quem me sentia responsável, levando a peito o meu papel de irmã mais velha. Nesta altura o meu instinto maternal desenvolveu-se fortemente, e eu imaginava então que ele era o meu filhinho...
Outros sótãos entraram na minha vida. Quando nos mudámos para a cidade para podermos estudar, a casa então alugada pelos meus pais era um casarão que dispunha de um sótão que era um outro andar. Quando entrámos nessa casa para a explorarmos pela primeira vez, corri para as escadas ao fundo do corredor, e, depois de as galgar, encantei-me com o sótão. Escolhi logo um dos quartos para mim. Eram quatro quartos, naturalmente esconsos, dois de cada lado do corredor, forrados com ripas de madeira pintadas de azul-claro, e paredes brancas. Cada um possuía uma janela de alçapão, para a iluminação e arejamento. O meu irmão mais velho também escolheu um dos quartos para ele, mas cedo voltou para baixo, partilhando o espaço com o meu irmão mais novo. Sentia-se mais tranquilo com companhia, pois não lidava bem com o escuro e, no andar de baixo, além da tranquilidade que a proximidade do mano lhe proporcionava, podia ainda usufruir da localização próxima do quarto dos meus pais. Ao fundo do corredor do sótão, havia uma porta feita à nossa medida (era o que gostávamos de pensar, uma vez que nos chegava à altura dos ombros), encimada por uma enorme clarabóia. Essa portinhola dava acesso aos arrumos, com as telhas à mostra, e onde só podíamos movimentar- nos de cócoras. Em cada quarto havia também uma porta de tamanho reduzido, que comunicava com os mesmos arrumos. Penso que foi a existência destas portas que desencorajou o meu irmão de manter o seu quarto no sótão.
Sentados por baixo dessa clarabóia, num dia mágico, embalados pela música que as gotas de chuva produziam ao embater nos vidros, com a porta de acesso aos arrumos aberta e aproveitando uma pausa nas arrumações decorrentes das mudanças, tivemos, eu e o meu irmão, uma conversa cheia de cumplicidades, em que confessámos um ao outro a perturbação de um corpo em mudança, que a natureza conduzia, a passo rápido, para a adolescência. Não me lembro de um momento tão íntimo com ele como aquele. Provavelmente, essa conversa caiu na escuridão do seu esquecimento. Mas eu lembro-me, tantos anos passados, e sinto uma ternura enorme por esse momento de partilha.
Na casa onde eu vivo com os meus filhos e o meu marido, e que é a nossa casa, no verdadeiro sentido do termo, há, como não podia deixar de ser, um sótão.
É um sótão simpaticíssimo, com muita luz, todo forrado a madeira. Duas pequenas portas laterais conduzem à “desarrumação”, nome adequado aos trastes que por lá se vão acumulando, preservando-os da nossa vista. Três paredes deste espaço amplo, que nós elegemos para local de trabalho, são inteiramente forradas por grossas prateleiras de madeira, que abrigam aqueles que são os meus companheiros de sempre: os meus livros. Dos mais antigos aos mais recentes, amigos que eu não dispenso, que me têm acompanhado desde sempre, e sem os quais a minha vida seria, sem sombra de dúvida, muito solitária e insípida.

Um dia na praia





Todos os dias faço a mim própria a promessa de me levantar suficientemente cedo para poder aproveitara a praia, e poder usufruir plenamente os dias que me separam do início do trabalho. Não consigo. Invariavelmente chego à praia quando os outros regressam, munida de guarda-sol para poder proteger-me do sol nos momentos em que ele é proibido para quem respeita as regras e tem cuidado com a sua saúde. Todos os dias me arrependo de não ter levado comigo o pára-vento, pois, mais do que me proteger do sol, eu sinto necessidade, isso sim, de me proteger do vento. Acabo por ficar na praia uns minutos. É que, a partir das dezasseis horas, levanta-se um vento, que se vai tornando bastante desconfortável…E, embora a praia fique desagradável, varrida por aquele vento incomodativo, não posso deixar de me interrogar por que motivo aquela gente resiste estoicamente, como cumprido uma promessa qualquer que lhes trará decerto algumas benesses. Eu não tenho esse espírito de sacrifício…Sou demasiado comodista.
O dia de hoje não foi excepção. Quando me levantei havia nevoeiro. Sou incapaz de sair de casa com a cama por fazer e a louça do pequeno-almoço por lavar. Tratei dessas coisas com todas as calmas e vi o sol a espreitar. Quase instantaneamente, o céu ficou azul, como se a neblina que impedia o azul de se mostrar, tivesse sido varrida por mãos amáveis.
Quando comecei a descer a rua, devidamente equipada, apercebi-me imediatamente que o trabalho de limpeza do céu tinha ficado incompleto. No horizonte, o mar tinha suspensa uma larga faixa negra, de um cinzento bem carregado. Os meus olhos deslizaram pelo horizonte, à esquerda, em direcção ao paredão. Por lá, algumas nuvens ligeiras, fofas e dispersas. Do lado direito, na serra, a cinza era ainda mais densa e impenetrável. Ao fundo da rua, em frente, a faixa era mais larga, mesmo no sítio onde costumo montar guarda. Mais um dia de vento e de frio, pensei. Mais uma vez, claro, sem pára-vento, fiel aos impulsos que se descobrem tardiamente inadequados. Coloquei o guarda-sol deitado, de maneira a proteger-me do vento. As abas começaram a bater ruidosa e freneticamente, acrescentado inúteis aragens às já excessivas. Deito-me e fico a olhar o céu.
Há qualquer coisa de majestoso no ritual do dispersar das nuvens.
Primeiro o aglomerado denso começa a espojar-se, a espreguiçar-se languidamente. Depois expande-se num ritmo mais acentuado. O branco vai-se apresentando esfarrapado, marmoreado. O azul avança, sumindo disciplinadamente o branco, como se alguém estivesse a retirar pedaços de um saboroso doce e fosse prolongando o prazer da degustação nesse demorado cerimonial. Daí a pouco o azul já só está raiado de branco. E, ante os nossos olhos, o que resta da nuvem esvai-se, num prolongado suspiro.
Agora apercebo-me de uma bruxa escabelada, que alguém puxa pelas pernas, enquanto ela se esforça por se agarrar com a boca do outro lado. Mas vai-se esfarrapando, desfazendo, e, dentro em pouco, está dissolvida no azul, perdida a sua identidade, o seu eu, a sua existência.
Também aquele descomunal colosso, que nos olha, de costas, altivo, imponente e sobranceiro, não escapa ao apetite lento, mas voraz, do azul.
O dragão longo e serpenteante, lembrando os espectáculos chineses, esvai-se sem ter tempo de nos deliciar com o seu espectáculo. Mal se apresentou, deu dois passos de dança, e foi engolido pelo azul.
E, o camaleão que estende a sua língua comprida para caçar a presa, fica desfeito em ilhas de azul…
Finalmente, o azul venceu. E o sol, luminoso e quente, brilhou, sem obstáculos.
Só então me apercebo que também o vento se retirou. E que estou a desfrutar de um belíssimo dia de praia.
Cracias à la vida!