"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

sábado, 14 de agosto de 2010

No fundo das cinzas



No Fundo das cinzas
Do meu ser
repousam
minhas desfeitas quimeras
Lanço-as ao vento
Para não mais as ver
E de novo construo
Meu viver...

Para não mais as ver
Lanço-as ao vento...
Das cinzas renasço
Armada para outras esperas...
De novas asas
Apetrechada,
Novos voos tento,
Imbuída
De fé e de esperança
Que me dão novo fulgor,
Novo alento...

E por mais mares
Encapelados
Por mais tormentas
No caminho,
Há sempre a calmaria
À minha espera,
Há sempre
À minha espera,
O meu ninho...

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

"Renascer"





Nem sabia por que cedera ao impulso de estender a roupa. Tinha decidido nem sequer a lavar. Deixá-la lá, no cesto da roupa suja, para ele sentir a sua ausência. Mas não fora capaz. Arrumara tudo, como era seu hábito. Queria deixar tudo impecavelmente limpo, como sempre fizera durante aqueles quinze anos. Apesar das angústias, dos desamores, das desatenções… das depressões.
Ia-se embora. Partir. Abandoná-lo. Deixar para trás aquela vida de morta-viva. Ia-se embora enquanto era tempo, enquanto ainda tinha forças para trabalhar. Ali sufocava e estiolava. Não aguentava os dias sempre iguais, monótonos, sem uma palavra de apreço. Ele já não a via. Em tempos ela ainda se esmerara em jogos de sedução: uma blusa nova, um novo penteado, um perfume diferente…mas nada o fazia sair daquele mutismo…olhava para ela, distraído, e não a via. Cansara-se.
Para já, ia alojar-se na casa da prima que morava nos arredores da aldeia, junto à paragem das camionetas. No dia seguinte, de madrugada, seguiria para Lisboa, onde Daniela lhe garantira alojamento e apoio.
Perdida a esperança de engravidar, o que talvez trouxesse algum vigor àquela relação moribunda, o melhor era partir. Levava pouca coisa. Colocara alguma roupa num saco que guardara na casa da prima. O que lhe interessavam as coisas? Aliás, em casa sempre tivera tudo. Ele comprava tudo o que era necessário, até algumas extravagâncias… Mas fora-se esquecendo de prover o alimento da sua alma. Ele confundia o sexo com a sua necessidade de ternura, carinho, conversa, estímulo, sorrisos…E ela precisava de tão pouco…bastava que olhasse para ela, que a visse, e reparasse na blusa nova, no penteado diferente, que lhe dissesse que era bonita, que a amava… que se chegasse junto dela carinhosamente, sem a ideia preconcebida de a arrastar para a cama.
O que ela fazia em casa, qualquer uma faria…Que contratasse uma empregada…No fundo, não era o que ela era, empregada para todo o serviço?
Quando chegasse, no Sábado, correria a casa toda à sua procura e não a encontraria…ficaria preocupado? Aborrecido? Raivoso? Ciumento?
Ora, que lhe interessava? Ficasse lá como quisesse…
Uma nuvem de tristeza ensombrou-lhe os olhos. Suspirou fundo. Tinha pena! Claro que tinha pena! Dela, dele, da vida deles, de…
Ora! Não podia deixar-se amolecer. A decisão estava tomada. E em Lisboa, iria trabalhar como auxiliar no infantário que a Daniela dirigia. Era o que ela sempre desejara! Em solteira, trabalhara com crianças! Mas ele quisera que ela ficasse em casa! Olha agora! Ficar em casa a contar os segundos, as horas, as decepções mensais nas cuecas manchadas… Que homem antiquado! Na altura, os argumentos dele convenceram-na, e pressentiu até algum despeito nas suas amigas...Ele ganhava mais do que o suficiente, não queria que se cansasse a cuidar dos filhos dos outros, mas que se preparasse para cuidar dos próprios filhos…Enfim! Ilusões!
De repente, lobrigou um vulto na janela da cozinha. Sobressaltou-se. Era ele. O coração bateu-lhe no peito.
O receio de que se apercebesse do que se preparava para fazer, roubou-lhe as molas das mãos, e a toalha caiu no chão. Ficou manchada. Era preciso lavá-la de novo. Mas…lavá-la, para quê? Isso já nada interessava, agora que a sua decisão estava tomada.
Ia fingir que não se dera conta da sua chegada.
******
Rosa saiu do banho de imersão perfumado. Nem queria acreditar no que estava a acontecer! Durante anos, sonhara com um momento como aquele!
Tinha que telefonar às primas e torná-las cúmplices do seu segredo. Ele não podia saber o que ela estivera prestes a fazer!
Convidara-a para irem jantar fora, e dançar!... Dissera-lhe que estava linda, e olhara-lhe os olhos com promessas, e…Ai meu Deus! Sentia-se uma adolescente! Que parvoíce! Ao fim de quinze anos!
Já pedira à irmã que a viesse maquilhar, e fora desencantar no baú aquele vestido de cerimónia que nunca chegara a usar! E ainda lhe servia! Ia pôr-se esplendorosa! Cheirava a paixão no ar! Não é que sentira um arrepio pela espinha, quando ele lhe dissera que estava linda? Ela sabia bem que não era bonita, mas a beleza está nos olhos de quem a vê e ele olhou, e viu-a bela aos seus olhos. O seu homem!
Neste momento não pôde conter-se e o dique aprisionado em seu olhar rompeu em águas mansas, salgadas e libertadoras. As águas correram e limparam as réstias de resistência que ainda moravam lá bem no fundo de si mesma.
Decidiu entregar-se e calar de vez o grito de alma emudecido durante anos na flor dos seus lábios. Olhou para o espelho e gostou do que viu. Sorriu para o rosto que o espelho lhe devolvia. Aquele sorriso acendeu-lhe primaveras no corpo. Viu as horas. Tinha que se despachar. Bateu as palmas. Sentia-se rebentar de excitação.
Nos escombros do seu coração começou a despontar uma tenra e viçosa esperança. Iria regá-la diariamente com ternura, cuidar para que nenhum vento lhe vergasse o caule tenro ainda menino.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Carta a meu pai



Vale da Ribeira, 2 de Dezembro de 2007

Meu pai:

Nem imagina quantas folhas de papel rasguei, antes de começar esta carta. Virei a minha imaginação do avesso, até, finalmente me decidir por “meu pai”.Embora o senhor tenha tentado apagar da sua vida esse episódio em que participou para me trazer ao mundo, é aquilo que o senhor é, quer queira quer não.
Nem imagina o quanto, em pequena, sonhava com o momento em que o senhor surgiria à minha frente a chamar-me “filha”, e me abraçaria com o amor de pai que eu nunca experimentei, porque o senhor mo negou.
Mais tarde, já rapariga, sonhava ainda que o senhor havia de aparecer, estender-me os braços, e que eu iria a correr aninhar-me neles, como qualquer filho faria...
As raparigas da minha idade sonhavam com um belo rapaz que, tal como num conto de fadas, apareceria do nada, casaria com elas e levá-las-ia para muito longe, onde seriam felizes para sempre. Eu também sonhava...mas o sonho mais importante dos meus dias e noites, era com o senhor.
Um dia havia de aparecer...
E então, eu esperava que, nessa altura, o senhor me resgataria do domínio daquele homem que me humilhava e maltratava, e que a minha mãe arranjou, para que fizesse o papel de pai que competia ao senhor, e que o senhor rejeitou.
Coitada da minha mãe! Como pagou caro o erro de ter confiado nas suas promessas!... Para evitar que eu fosse humilhada na escola quando me perguntassem o nome do meu pai, ou quando tivesse que preencher algum documento e, no lugar do nome do pai fosse obrigada a escrever aquela palavra terrível que me marcaria e inferiorizaria, comprou, para a sua vida e dos filhos, um bêbado do qual era obrigada a fugir pela noite dentro, ao frio, à chuva, arrastando consigo os filhos que ele perseguia munido de uma faca, numa fúria assassina. Aprendi a odiar esse homem, ao assistir às cenas de pancadaria a que ele sujeitava a minha mãe, e aos maus-tratos que nos infligia a todos. Quando descobri que ele não era meu pai, consegui perdoar-me, e prosseguir a minha vida sem o peso terrível que era saber que se odeia o próprio pai. Essa consolação não tiveram os meus irmãos, que, apesar de filhos deste bruto, nem por isso escapavam a esta sanha animalesca.
Mas nessas alturas, em que o álcool e a raiva o viravam contra nós, eu rezava, pedia a Deus que me trouxesse o meu pai, que ele me salvaria das mãos deste louco e lhe pediria contas pela maneira cruel e desumana como me tratava... Se não fora o meu avô a acolher-me em sua casa a partir dos meus catorze anos, não sei o que me poderia ter acontecido...
Mas as vozes do Céu permaneceram mudas...Dizem que vozes de burros não chegam aos céus...Talvez eu fosse burra, mas por acreditar que este milagre pudesse ser possível...Sim, porque de burra para as coisas da escola, segundo diziam os professores, eu não tinha nada...A professora primária bem disse à minha mãe que era uma pena eu não poder continuar a estudar...Mas eu era a mais velha...E o meu padrasto sempre me discriminou relativamente aos meus irmãos...Como pensar em estudar? Era preciso que eu ficasse a cuidar da casa, dos meus irmãos, fizesse a comida, enquanto a minha mãe ia trabalhar para nós e para o bêbado do marido que ficava agarrado à cama semanas inteiras, a curar a bebedeira...
Como teria sido diferente se o senhor tivesse cumprido a lei da ética, já que não pôde fugir à da Natureza, trazendo-me ao mundo...
Imagino o quanto deve ter odiado a minha mãe, por se ter recusado a abortar como o senhor queria!...Sei que a tratou com desprezo, como a um ser inferior, ao arranjar testemunhas que, a troco de uns tostões, empenharam a honra jurando falso, ao inventarem-lhe outros homens com os quais se teria deitado, saindo o senhor livre do compromisso que não teve a dignidade de assumir...
Não lhe bastava tê-la lançado nas bocas do mundo por ser mãe solteira, “crime” do qual o senhor foi cúmplice, tratou ainda de lhe denegrir a reputação, remetendo-a ao mais baixo da escala moral a que uma mulher pode chegar...
Estou a par de tudo...Mas a minha mãe conseguiu superar isso tudo...Se lhe perdoou ou não, não sei. Sei que não esqueceu. Nem eu esqueci, nem esqueço... Aquilo que verdadeiramente me fez falta, como lhe contei, já o senhor me não pode dar.
Por diversas vezes as minhas tias me instigaram a que o procurasse, que havia de se lhe derreter o coração quando eu lhe aparecesse à frente, e o senhor visse na minha cara espelhado o seu rosto...Mas eu nunca quis...Nunca o procurei com receio de que pudesse pensar que estava a exigir aquilo a que tinha direito. A minha mãe diz que eu sou orgulhosa como o senhor.
E não me teria mexido, nem teria sequer falado aos meus filhos no senhor, se o seu irmão, tinha eu quase dezoito anos, me não tivesse procurado, tomado o pulso, perguntando-me se eu precisava de alguma coisa, dizendo que o senhor pensava em mim e queria aproximar-se. Houve quem me alertasse para a possibilidade de os senhores quererem saber se eu estaria na disponibilidade de mover uma acção de investigação de paternidade, a qual só seria possível até aos meus dezoito anos. Não acreditei, e até fiquei zangada. Eu defendi o senhor, veja bem! Que ingenuidade!
E foi nessa altura, quando o seu irmão me procurou, que eu, no fundo de mim lhe perdoei...
Penso que o senhor terá ficado bem tranquilo, ao aperceber-se de que eu, pobre de mim, não seria nenhuma ameaça, nem para a serenidade do seu casamento, nem para o património dos seus filhos, nem para a sua tranquilidade de espírito. Eu sempre disse, muito embora tenha sido chamada de parva por causa disso por muito boa gente, que nunca exigiria nada do senhor. Mas que, se porventura me quisesse presentear, também não recusaria. Houve também quem me viesse dizer que uma determinada terra do seu património, me estaria destinada...Não acreditei...Pelo menos, eu não quis acreditar, com receio de que isso fosse demasiado bom para ser verdade e, ao acreditar, pudesse trazer azar a essa hipótese. Não que me importasse o valor da terra, mas porque esse gesto seria a prova de que o seu coração teria reconhecido a filha que as suas palavras nunca aceitaram. E o meu coração ficou também mais quentinho e aconcheguei num cantinho, o senhor, meu pai…
Mas o tempo foi passando, e o senhor nunca mais fez nenhum gesto para se aproximar, como tinha prometido...E eu respeitei o desejo dessa maneira expresso, de estrangular à nascença esta relação, que nem chegou a nascer. Ficaria sossegada, aqui, no meu cantinho, e não teria a ousadia de sequer pensar em lhe escrever. Mas os filhos fazem-nos repensar as nossas intenções e corrigir atitudes, ou traçar-lhes uma outra trajectória.
O meu filho mais novo, que tem agora onze anos, não me larga, sempre a dizer-me que quer conhecer o avô. A culpa é minha, porque sempre lhes falei no senhor, desde miúdos, com todo o romantismo que a minha alma albergava. O mais velho, nunca manifestou curiosidade em conhecê-lo. Mas este mais novo é tão sensível!...
Os meus filhos são o melhor que eu tenho! Embora com dificuldades financeiras, sempre com os trocos contados, a procurar esticar o dinheiro até ao fim do mês, procuro dar-lhes o que está ao meu alcance, e sempre que posso, fazer-lhes um miminho. Não lhes falta amor, atenção e carinho, e procuro dar-lhes tanto mais, quanto a mim me faltou.
Um dia, depois de muito ter ouvido este meu filho, acabei por ceder à proposta dele e fomos procurá-lo a sua casa, mas o senhor, se estava em casa, refugiou-se bem lá dentro, evitando o confronto.
O meu filho mais novo diz-me muitas vezes que quer ir para a Universidade. Que lhe posso dizer? Cortar-lhe já essa possibilidade? Vou-lhe dizendo que estude, estude muito, porque, se for bom estudante, logo se há-de ver. Claro que gostava que ele fosse doutor, se tivesse cabeça … Mas sei que não temos possibilidades económicas para isso. Mas, se ele o merecer, e continuar com essa ideia enraizada, eu tudo farei para o conseguir. Continuo a ser orgulhosa, mas agora sou mãe. Há outros sentimentos que se sobrepõem ao orgulho.
Entretanto, o meu filho continua a insistir em querer conhecer o avô.
Não sei como o serenar. Que lhe hei-de dizer? Que o avô não quer saber da sua existência?


Cumprimenta-o a sua filha,
Leonor


P:S: Pedi à minha patroa que me corrigisse o português desta carta. Ela é minha amiga, desde os meus dezasseis anos, e eu confio nela. Ajudou-me a encontrar as palavras para dizer aquilo que eu queria dizer, mas não sabia como. Mas as ideias, são minhas, e só minhas.

domingo, 8 de agosto de 2010

Uma longa viagem







Finalmente chegou. Era preciso galgar a pé o quilómetro que o separava de casa. O alvoroço coexistia com uma sensação de calma, como se a simples decisão de mudar de vida lhe eliminasse os anos de stress acumulado. Mesmo que tivesse decidido não pensar na experiência que vivenciara, não podia apagá-la como se fosse o traço de um lápis que se elimina com o simples passar da borracha. Ainda não decidira se contaria à Rosa. Era difícil de explicar e de acreditar. Poderia até pensar que tinha enlouquecido... O melhor era calar-se, por enquanto. Depois se veria. No final da curva, a sua casa apareceu. Uma casa pequena, de pedra, enquadrada por hortenses, as flores preferidas de Rosa. À frente da casa estendia-se a horta bem cuidada. Pela primeira vez olhou as portadas com olhos de ver. Precisavam de uma pintura. Já não iria adiar mais essa tarefa. Teria muito tempo para isso. Abriu o portão. Entrou em casa sem fazer barulho, antegozando o ar estupefacto da mulher. Deu a volta à casa, sem a encontrar. Da janela da cozinha viu-a nas traseiras, pendurando a roupa que a máquina ainda quente acabara de lavar. No rosto desgastado da mulher liam-se os últimos quinze anos de depressões provocadas por tentativas frustradas de engravidar. A medicação tinha-lhe deformado o corpo elegante que o vestido de noiva cingira no dia do casamento. José sabia-lhe o olhar sempre ensombrado por uma nuvem de tristeza, mesmo quando se ria. E ele não tivera paciência para entender. Muitas vezes a deixara sozinha entregue àquela dor silenciosa e fora afogar a dor que era comum, no café do bairro. Uma dor que cada um procurava curar de costas um para o outro, perdidos em gestos e olhares desencontrados. Pela primeira vez reconhecia o egoísmo que a atitude de se afastar, deixando-a sozinha a lidar com a ausência de risos de criança, podia comportar. Sempre apaziguara a sua consciência dizendo de si para si “que eram coisas de mulheres”… José sentiu uma ternura infinita pela sua companheira. Aproximou-se e resolveu chamar por ela, para a não assustar.
— Rosa! Cheguei!
O rosto de Rosa voltou-se para ele. Triste, com sempre.
— Já chegaste?! Mas tinhas dito que só vinhas no sábado! Aconteceu alguma coisa?
Enquanto dizia estas palavras, levantou a cabeça, para trocar com o marido os dois beijos de boas-vindas habituais.
José puxou-a para si, olhou-a nos olhos até à alma. Disse então:
— Sabes que estás linda?
— Eu?! — O tom de incredulidade foi acompanhado por uma passagem das mãos pelos cabelos, tentando repor no seu lugar uma repa teimosa que lhe descaía sobre o rosto, e um sorriso tímido. — O que tens? Nunca me viste? — perguntou, rindo-se. Desde há muitos anos que se desabituara destes mimos do marido, e sentia-se até um pouco desconfortável com esta atenção.
— Olha, hoje vamos jantar fora e depois vamos dançar. Que dizes?
— Que não deves estar bom da cabeça!
José pegou-lhe nas mãos. Depois insistiu.
— Rosa, olha para mim. Para os meus olhos. De agora em diante vou falar contigo sempre de olhos nos olhos. Não estou a brincar. Estou a fazer-te um convite sério. Põe um vestido bonito e vamos sair.
Um sorriso lindo iluminou o rosto de Rosa. Ainda contrapôs:
— Mas…Tu não gostas de dançar…
— Mas gosta a minha querida mulher…
Rosa quebrou as suas resistências, abraçou o marido e, como uma criança, bateu as palmas:
— Ai que bom! Ai que bom! Mas… vestido!... Não tenho vestido! …
— Claro que tens! Aquele que comprámos para a festa da Daniela…
O sorriso de Rosa morreu-lhe nos lábios. José percebeu o esmorecimento da mulher.
Aquele vestido nunca o chegara a usar…Compraram-no com um grande entusiasmo para o casamento da Daniela, a sobrinha que casara em Lisboa numa família muito “bem”. Mas ele embebedara-se na véspera, e o vestido ficou guardado no baú durante anos, sem nunca ter chegado a oportunidade de ser usado…
— Desculpa, Rosa! Eu vou mudar! Aliás, já estou mudado!
Rosa afastou com as mãos esses pensamentos intrusivos e, voltando ao ar gaiato, agora reconquistado, decidiu:
— Vou buscá-lo! Tenho que o pôr a arejar antes de o passar a ferro. E ver se me serve!
Os olhos de José seguiram a mulher até ela desaparecer no interior da casa. Olhou então para dentro de si, convocando os estranhos acontecimentos daquele dia, daquele exacto momento, daquela fracção de segundo, em que José tomou uma decisão. A sua vida cheia de rotinas entediantes, a sua vida cinzenta, de trabalho duro, de um bom salário cheio de horas extraordinárias sem dias para o gastar…essa vida sem sentido, ia acabar…
Aos dias seguiram-se os meses, os anos, sem que nada de verdadeiramente importante o fizesse sentir que a vida valia a pena ser vivida…Os quinze anos de casado não lhe trouxeram os filhos por que ansiara…Dentro de pouco tempo estaria velho, a coluna desfeita pelas longas horas de condução, e a vida por viver…
Naquele dia, naquele exacto momento, naquela fracção de segundo em que adormecera ao volante do camião de longo curso que durante anos fora a sua casa, tomou a suprema decisão de comandar a sua vida.
Naquele dia, naquele exacto momento, naquela fracção de segundo em que fechara os olhos, embatera violentamente contra outro camião, sendo projectado pelo ar e esmagado contra o asfalto, vira-se a si próprio espectador da sua desgraça: arrastado num turbilhão de cenas passadas, a esbracejar e a escorregar, sugado por um sorvedouro gigante em forma de cone de névoa… e vira o sorriso triste da mulher…e desejara que tudo tivesse sido diferente… Subitamente, como num filme em rewind,, encontrou-se de novo sentado ao volante do seu Mercedes-Benz e o camião, o tal contra o qual embatera, passou calmamente no outro lado da estrada, saudando-o com o sinal de luzes.
Não teve dúvidas…Não fora um sonho…Fora um sinal. A Morte batera-lhe à porta, tragara-o e cuspira-o, como alguém que, por engano, prova algo que detesta. Uma nova oportunidade. Não sabe porquê. Mas não a ia desperdiçar, nem perder muito tempo a esmiuçar as razões…Chegara a altura de tomar o seu destino nas suas próprias mãos, e encetar uma nova viagem. A partir daquele momento, uma nova vida o esperava…
Estacionou o camião na estrada, junto a uma paragem de camionetas de carreira. Ligou para a empresa, a explicar onde tinha deixado o camião, e a pedir que não contassem mais com ele. Fez sinal à camioneta que chegava e entrou. Sentiu um alívio enorme, como se o camião que acabara de abandonar na estrada, deixasse de lhe pesar nas costas. Sorriu ao imaginar o ar de surpresa da Rosa. Agora ia começar uma nova vida. Uma nova viagem. Uma longa viagem… Era pelo menos o que ele esperava…se não fosse para coser as pontas desalinhadas da sua vida, por que outro motivo ele tinha sido devolvido pela morte?
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Fora tão fácil fazê-la feliz! O ar maravilhado e incrédulo que lhe vira no rosto, quando se admirara ao espelho maquilhada pela irmã! A segurança com que ela caminhara nos saltos altos, como se nunca tivesse feito outra coisa…O vestido, o célebre vestido de trespasse, a que ela só precisara de mudar um botão, o jantar saboreado com vagar no restaurante com pista de dança, o brilho extasiado no seu olhar… A valsa que dançaram na praça, quando regressaram a casa, ternamente enlaçados, e que culminou com os aplausos dos vizinhos, que, longe de se zangarem por terem sido acordados, com eles festejaram o amor… A noite de louca paixão renascida que lhes incendiou os sentidos…
Já não se lembrava daquela maravilhosa sensação de apaziguamento, de terna felicidade…Na verdade, sentia-se leve, leve…como se o chão tivesse uns amortecedores, que lhe davam a sensação de caminhar nas nuvens…Deixara de sentir as dores nas costas, e a barriga pesada, embora ela continuasse lá, bem proeminente…
Deu um último retoque ao tabuleiro do pequeno-almoço, colocando uma rosa que colhera no jardim, ao lado da chávena da sua Rosa. Cuidadosamente, agarrou no tabuleiro e dirigiu-se ao quarto.

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