"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

sábado, 10 de julho de 2010

Disparou...






O som dos carros que silvavam no empedrado da calçada não a enganava. O dia despertara, avançava apressado. Ela é que não tinha pressa nenhuma. Passara a noite em claro, contando as badaladas do relógio da sala, procurando concentrar-se na sua respiração para aprisionar o sono. Em vão. Tanto que desejara o amanhecer, e agora que alvorecia, desejava não ter que sair da cama. Doía-lhe o corpo, maçado de tanto voltear, a cabeça, que não lograra descansar, e no peito pesavam-lhe angústias acumuladas que os medicamentos não conseguiram ainda amenizar. “Dá tempo ao tempo, pequena!”, dizia-lhe o médico, mas os meses iam passando…
Era preciso continuar a viver, mas essa era uma tarefa monstruosa…Durante o dia esforçava-se, ria e fazia rir as colegas do escritório, contava piadas brejeiras, não queria que tivessem pena dela, lágrimas é que nunca veriam, que se desiludissem os que esperavam vê-la por baixo…mas mal entrava em casa caía-lhe o vazio da sua vida em cima e a energia que mantivera durante o dia escoava-se como a água pelo ralo …Como iria conseguir viver dentro daquelas paredes, tão cheias de lembranças, as boas e as más, pois por ter conhecido as boas é que lhe era insuportável conviver com estas…
Recusava abrir os olhos e enfrentar tudo o que a esperava…Recusava, sobretudo enfrentar o vazio da sua cama…Ainda se não habituara a ver a cama do lado dele sem vestígios do seu corpo, embora soubesse que, se abrisse os olhos e esses vestígios lá estivessem, significaria que ele era um criminoso, por ter violado as ordens do tribunal, ou que ela era doida por lhe ter perdoado …ou, quem sabe, talvez ele tivesse voltado a amá-la outra vez…e tivessem tentado de novo…
Abriu os olhos. Sacudiu a cabeça para afastar aqueles pensamentos delirantes e soltou um gemido. Parecia que alguma coisa se soltara lá dentro. Tinha que passar o dia como uma anormal, tentando não se mexer bruscamente…
Ouviu passos na cozinha…O ordinário ainda não tinha saído… não bastava ter entrado em casa às três da manhã, ostensivamente ruidoso, subindo as escadas em tropel, batendo com todas as portas, sem respeito pelo seu descanso…claro que o seu descanso era o que menos lhe importava, e respeito por ela, há muito tempo que o tinha perdido, mas como era possível que nem o mais elementar instinto de protecção comum a qualquer besta relativamente às suas crias o não fizesse respeitar o descanso do filho? Ela bem sabia que isto tudo fazia parte de um estratagema para a fragilizar psicologicamente e a obrigar a abandonar a casa que era ainda de ambos…Mas estava muito enganado se pensava que cedia a chantagens…
Iria lutar até ao fim por aquilo a que tinha direito, não tanto por ela, mas pelo filho adolescente que ele renegara, ao excluí-lo de todos os afectos como a excluíra a ela. Nunca lhe perdoaria o terror psicológico a que sujeitara o miúdo, quando, na última vez em que haviam viajado de carro, ele disparara em altas velocidades, travando e acelerando a fundo nas veredas mais estreitas, rindo-se dos gritos e do pânico que provocava nos passageiros. Segundo ele, não passara de uma brincadeira, ela é que não tinha sentido de humor…Era doido, mas ninguém acreditou que ele provocara voluntariamente aquele clima de terror no intuito de a fazer passar por paranóica entre os amigos…Por isso ela só se deitava depois de o filho se trancar no quarto, e de ela fazer o mesmo…
Mas vivia em sobressalto …Houve quem a aconselhasse a ter uma arma consigo, na mesinha de cabeceira…Recusara…Não confiava na sua capacidade de controlo…Era bem capaz de a usar… O seu olhar procurou o frasco quase cheio onde ia depositando as moedas de dois euros. Na eventualidade de ser atacada, o frasco servir-lhe-ia de arma…
Tudo se iria resolver…As coisas estavam bem encaminhadas…Era, pelo menos, o que dizia a sua advogada.
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— Maldito! Vai parar ao inferno! — Ela apontava-lhe uma arma de fogo, decididamente, segurando-a com as duas mãos.
— Grande cabra! Para que é esse brinquedo? Tinhas lá coragem para uma coisa dessas!
Virou-lhe as costas, e continuou a barrar o pão com manteiga, sacudido por algumas gargalhadas.
Aquelas gargalhadas acordaram nela uma raiva secular. Num flash as humilhações infligidas nela e no filho, passaram-lhe à frente. Viu-o virar-se para ela. Viu-lhe os dentes amarelados, com a falha que transportava desde miúdo, a boca a mexer-se enquanto falava, falava, falava…sem que ela conseguisse ouvir o que ele dizia. Só ouvia as gargalhadas daquele homem com quem um dia ela fora capaz de se deitar e que agora procurava humilhá-la.
Sentiu-se nauseada, a saliva na boca a crescer-lhe, as batidas cardíacas aceleradas nos dedos que apertavam o gatilho. Disparou.
Ao mesmo tempo, acordou com o estrondo. Ouviu um grito enorme. Saltou da cama, meio atarantada, sem perceber logo onde estava. Abriu a porta e correu corredor fora, em pânico. Chamou pelo filho.

Na cozinha, o rapaz apontava ao pai uma pistola ainda fumegante. No chão começava a alastrar uma poça de sangue, debaixo do corpo todo torcido daquele que fora o carrasco de ambos.
— Meu filho!
— Matei-o, mãe! Matei-o! — soluçou.
Abraçou-se a ele fortemente. Beijou-o e tornou a beijá-lo.
— Meu menino! Meu querido menino!
O rapaz estava sem reacção. Tirou-lhe ternamente a arma. Limpou-a. Depois pegou nela como se fosse atirar.
Em seguida agarrou o rosto do rapaz com as duas mãos, e fitou-o firmemente nos olhos.
— Filho, ouve o que te vou dizer. Quem matou o teu pai fui eu. Estás a ouvir? Fui eu. Em legítima defesa. Acordaste com o estrondo. Não sabes mais nada, ouviste? Deixa o resto por minha conta.
Pegou no telefone e marcou o 112.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Aqui estou...















Caminham as tuas agitadas
Ondas de espuma
Na passadeira dos meus
Passos brancos
Que orgulhosamente
Ao longe se levantam…

Ouço a tua voz de areia
Cedendo sob os meus pés mais nítidos
À medida que me aproximo…

E eu continuo o prazer
Do sabor antecipado
Caminhando…

Detenho-me a uma certa distância…
Cai-me ajoelhado o saco de livros
Acabados de comprar
E também os meus se vergam…

Não resisto à paz que lentamente
Começa a invadir-me os sentidos…

Enterro as mãos de areia fina e quente
E deixo-a escapar-se-me
Por entre os dedos abertos
Expectantes de carícias…

Espraio o meu olhar
Pelas tuas águas
Da cor de papo de rola
Revoltas

Fecho os olhos,
E cheiro a tua música
Que se repete num vaivém
E vai crescendo e crescendo e mordendo
E chicoteando a areia

E já ecoa o bichanar rezado das beatas
E na areia de novo cresce em tropel
E se levanta e urra…
E nela se aninha extenuado…

Levanta-me os cabelos uma brisa suave
Beija-me o rosto salgado
O respingar sussurrado das tuas águas…

Abro os olhos …
E do fundo de mim,
A tranquila felicidade
De um murmúrio dança-me nos lábios:
“ Cheguei! Cheguei!”