"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

sábado, 26 de junho de 2010

Estava vazio

Ouvem-se ao longe dispersos acordes de músicas populares, como quem afina os instrumentos. Daqui a pouco, a música rebentará, plena e sem hesitações.
Evola-se dos espaços abertos das casas em redor, a fragrância da sardinha assada. Imagino-a, loirinha, a pele estaladiça, os lombos brancos e suculentos a escorrerem o delicioso suco. Começo a salivar…um desejo incontrolável apodera-se de mim. Decido que hoje tenho que comer sardinhas. Quando chega o Alberto, lanço-lhe o desafio.
Afinal, hoje é noite de S. João.
Desde os dezasseis anos que não ponho os pés lá em baixo, no povo… Nessa altura, saltavam-se as fogueiras, dançava-se na praça…E porque não? Calcei umas sapatilhas e descemos a rua, eu com aquela alegria que nos assalta quando deixamos que as coisas entrem naturalmente nos nossos dias, sem as afugentar…
Chegámos na altura certa. Dez minutos depois, já uma longa fila se formava na caixa de pré-pagamento. Renques de mesas no interior do pátio acolhiam os comensais. Os pratos e os talheres de plástico não lograram quebrar-me o entusiasmo.
A boroa fazia honras à sua fama… As sardinhas satisfizeram-me. O prazer de estar ali ao ar livre, saboreando o que para mim é um autêntico pitéu, superou a desconfiança relativamente à integridade do tempero da salada, parente muito afastado do insubstituível azeite…Bebemos uma garrafa de vinho e, no fim, uma pequena transgressão: fumámos um cigarro. Ao levantarmo-nos, senti-me um pouco tonta, confirmado na troca das pernas.
Fomos avançando. Passámos em frente das traseiras de casas velhas, novas, reconstruídas… mas todas elas tendo em comum o seu quintal, maior ou mais pequeno, com caramanchão natural ou construído para a altura da festa…mesas improvisadas, fogareiros, sardinhas, fêveras, vinho, animação, convidados… O tom era de festa.
Depois de um ligeiro deambular, sentámo-nos num banco de pedra corrido, à beira de uma velha casa de granito, mesmo ao lado do local onde tinha sido montado o palco. A pedra conservava ainda o calor deixado pelo sol que durante toda a tarde ali se espojara. Assumimos placidamente o papel de espectadores.
A noite vai avançando, ao mesmo tempo que aumenta também o vai-e-vem dos populares. Vão passando rostos conhecidos, aos quais se acena com um sorriso, e outros que se abeiram para um cumprimento mais personalizado. O som do arraial vai aumentando. Ouve-se a infalível música “pimba.” Hoje nem essa música me incomoda.
Em frente ao local onde nos instalámos, do outro lado da rua e vedando o acesso a uma garagem, uma garota que aparenta não ter mais de nove anos, de uma suave e natural beleza loura, vigia a sua trouxa: um enorme cacho de balões de papel, uma pequena banca toscamente improvisada, expondo apitos extensíveis e martelos de S. João, e, no chão, um saco de plástico de grandes dimensões, onde objectos idênticos aguardam a vez de mudarem de dono. A garota chama a atenção dos eventuais clientes batendo ritmicamente com um dos martelos na palma da mão, num “pic-pic-pic” irritante e monótono, ao mesmo tempo que a sua trança loura salta ao mesmo ritmo. Passados alguns momentos, apercebo-me que a pequena desaparecera e fora substituída no “pic-pic-pic” e na banca por um rapaz bem mais velho. Entretanto começa o espectáculo. Não obstante, por ali nos deixamos ficar, alongando prazenteiramente os momentos relaxantes. O negócio em frente corre de vento em popa, maugrado a tão badalada crise.
Vem acomodar-se no mesmo banco, uma família como tantas outras. Os pais são jovens, e os três filhos bonitos. O mais novo, ainda bebé, mansamente acomodado no carrinho, lança os olhares curiosos que a cúpula do carrinho lhe permite.
A garota, talvez com três anos, olhar negro profundo, e uma expressão doce, entretém-se a observar o vaivém das pessoas. O rapaz mais velho não terá mais de sete anos. É forte, no limite da obesidade, pestanas longas e cerradas. Não deixa dúvidas quanto à filiação paterna.
A determinada altura dei conta do garoto junto do pai, insistindo na pedinchice habitual de algumas crianças. A reacção não foi muito acolhedora. Perante a insistência, o pai começou a espicaçar o rapazito, a mandá-lo avançar. A criança dava dois passos e voltava para trás.
— Vai lá tu, pai!
— Não, não, vai, vai lá perguntar!
O rapaz dá meia dúzia de passos e recua novamente. Depois de estarem neste jogo alguns momentos, a mãe avança e vai direita ao jovem vendedor dos martelos. Volta com uma informação, que foi unilateralmente chumbada pela soberana decisão paterna. O garoto desata num choro desconsolado. Deita ao pai um olhar suplicante por baixo das cerradas pestanas. Cruza os braços, choraminga. A mãe passeia o olhar pela multidão que passa, também ela indiferente ao pequeno conflito entre pai e filho.
A figura paterna afasta-se. Enverga umas bermudas de ganga, uns ténis Nike falsos. O ventre volumoso faz-lhe alçar a tee-shirt preta. O rapazito vencera a disputa. Enganei-me. Dá alguns passos, retorna. Volta-se para o filho com um sorriso desdentado, mascando uma chiclete. O rapaz responde-lhe com o seu ar amuado, suplicante e de braços cruzados. O pai volta a afastar-se, desta feita em direcção ao palco, onde o espectáculo está ao rubro. O garoto vai-lhe no encalço. Corre para ele a mãe, subitamente desperta do aparente alheamento. Descansa quando repara que o garoto se juntou ao pai. Também ela ostenta uma barriga demasiado proeminente. A miúda olha-me longamente. Começa a cantarolar baixinho, e depois ignora-me, voltando o seu interesse para si própria. Pai e filho juntam-se ao resto da família. Os dois adultos não trocam palavras entre si, embora a postura de ambos seja a de um entendimento tácito.
Atitude espaventosa, de galo, a deste progenitor. Fica de costas voltadas para a família. Estica o corpo, incha o peito, abre as pernas, como forcado que se prepara para a “pega”. Enfia as mãos nos bolsos das calças. Balouça o tronco para a frente e para trás, levantando alternada e ligeiramente os calcanhares. Deixa-se estar assim, a baloiçar-se para trás e para diante, quem sabe se ruminando alguma importante decisão…Passeia a mão pelo peito e alisa a tee-shirt em cima da barriga a custo coberta. Subitamente arranca em direcção ao vendedor. Os dois garotos vão atrás dele. Volta um minuto depois, no rosto estampada a desolação. O garoto vem de boca escancarada, agora num choro magoado. A garota imperturbável.
Chega ao pé da mulher, que o questiona:
— Então?
— Esgotados.
— E o saco?
— O saco? Vazio. Já estava vazio…

domingo, 20 de junho de 2010

Homenagem a José Saramago

" A vida é imprevisível.Põe palavras onde imaginávamos silêncios e súbitos regressos quando imaginávamos que não voltaríamos a ver-nos."
José Saramago

Fico sempre triste quando uma estrela deixa de brilhar aqui na terra, para ir iluminar outras esferas.
Apesar de algumas posições corajosamente controversas, fruí a leitura de não mais de meia dúzia dos seus livros-poucos, como se depreende, atendendo à sua vasta produção... Mas o texto que maior impressão me causou, foi uma crónica, em jeito de carta, que escreveu à sua avó, e que me emocionou profundamente, a ponto de ainda hoje me lembrar dele... talvez porque as suas palavras me fizeram pensar na grande mulher que foi a minha propria avó...
Li esse texto há muitos anos, mas recordo-me que nele Saramago deixava tranparecer uma grande ternura por essa mulher simples, de noventa anos, com um vocabulário reduzidíssimo, que pouco mais conhecia que a soleira da porta da sua casa onde se sentava ao sol. Mas, apesar desse seu mundo tão limitado, ela confessava para o neto: "O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer..."
Ao contrário, dizia-se que Saramago não tinha medo da morte... Ainda bem!...