"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

domingo, 6 de junho de 2010

55 anos








Cheguei há pouco da terrinha que me viu nascer há cinquenta e cinco anos. O motivo da deslocação foi juntar os nascidos neste rincão, há 55 anos, para uma pequena comemoração. No programa constava também uma visita ao cemitério, em romagem de saudade aos já falecidos, e colocação de uma flor simbólica nas suas campas e na do casal de professores primários que nos ensinou — ele os rapazes, ela as raparigas. Estes encontros têm-se realizado de cinco em cinco anos, desde 1985. Esta foi a minha segunda participação. Desta vez não pude estar presente nas actividades que estavam programadas para a manhã, pelo que, quando cheguei para o almoço, algo atrasada, já estavam todos sentados.

Alguém me guardou um lugar numa das mesas. Conversei mais do que comi. Como já é habitual nos encontros deste tipo, e este não foi excepção, as mulheres, de uma maneira geral, mantém-se com um aspecto mais jovem.

Foi agradável reconhecer alguns rostos, embora também me tivesse entristecido não ter reconhecido outros, apesar das explicações. Eu saí deste cantinho para continuar a estudar aos onze anos, e fui perdendo o contacto com a maior parte deles. Naquela altura, era raro tirarem-se fotografias. Na maior parte das famílias, o dinheiro mal dava para comer, e só os que seguiram estudos, têm registos desse tempo perpetuado nas fotografias do bilhete de identidade, o qual, para os outros, não era obrigatório. Mesmo assim, reconheci mais rostos femininos do que masculinos, o que se compreende, dado o facto de, nessa altura, nos ser praticamente vedado o convívio entre sexos. O edifício escolar estava divido: os rapazes iam para um lado, e as raparigas para outro. Os recreios estavam separados por muros.
Durante o almoço, na minha mesa comentou-se o programa que eu tinha perdido. Relembraram-se com saudade os colegas já desaparecidos. Aproveitei para dizer que não lamentava ter falhado a colocação das flores nos professores. Não tinha nenhuma vontade de deixar flores a pessoas que eu considerava responsáveis por alguns traumas de infância.
Acorreram-me imagens do tempo escolar, em que fomos martirizadas por uma professora, que, não tendo tido filhos, semeou nos nossos corações o medo, a angústia, a insegurança…Nunca fomos poupadas aos castigos…e, aquelas com quem falei, confessaram também não terem sido tempos felizes os que passaram na escola. É certo que ficámos bem preparadas…mas a custo de termos atravessado a nossa infância sob um clima de terror…A pedagogia que imperava, era a da régua…Durante muitos anos vivi assombrada pelos pesadelos de uma professora agressiva, intolerante, injusta, pronta para castigar ao mínimo deslize, que me atormentava as noites, mesmo depois de, no liceu, saber que já nada me poderia fazer voltar à escola primária. Mas, no meu subconsciente prevalecia nítida essa marca que voltava materializada nos sonhos, sempre que no meu percurso de vida se atravessava alguém cujo comportamento se assemelhava ao da professora primária.
Encontrei e reconheci a Alicita, nome carinhoso que todas lhe dávamos, por ela ser tão pequenita, apesar de ter a mesma idade que nós. Parecia uma boneca, loira, magrinha, pele diáfana… A Alice ficou feliz por eu a ter reconhecido. Peguei-lhe nas mãos e juntei-as às minhas.
— As tuas mãos continuam pequeninas, Alicita!
— Pois, como eu!
Rimos. É de estatura baixa, de facto, mas irradia alguma alegria nos olhos brilhantes, no rosto e nos gestos. Contei-lhe que me lembrava muitas vezes das mãozitas dela branquinhas e pequeninas, a serem torturadas pela régua empunhada por aquela mulher implacável! …
Ela assentiu. Ficou calada, por breves instantes.
— Então quando levávamos reguadas e as mãos estavam geladas, parecia que caíam… E os pobres eram mais castigados que os outros…
Esta observação veio ao encontro de uma impressão que me ficara, mas que eu não tivera ainda oportunidade de confirmar…Alice vivia, no tempo da nossa meninice, num bairro social, mandado construir de raiz para os pobres, por um benemérito da terra.
Contou então que houve uma altura na escola em que era preciso um caderno de problemas que a professora se encarregou de encomendar e que custava dois e quinhentos.
O pai estava hospitalizado, a mãe não tinha dinheiro para comprar o caderno.
Todos os dias a professora lhe perguntava pelo dinheiro. Todos os dias a Alicita explicava à professora a situação familiar e todos os dias era mimada com reguadas. A partir de certa altura, já era um ritual. A Alicita já nem esperava que a professora lhe mandasse esticar a mão para o castigo diário, que não falhava, e as lágrimas também já vinham antecipadas. Finalmente, o dinheiro chegou. Tal era a força do hábito, que Alice estende as duas mãos: uma com o dinheiro; a outra a oferecer-se ao castigo.