"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

quarta-feira, 2 de junho de 2010

A voz de Deus


Tempos terríveis os daquela aldeia serrana… Terra sem homens, ou quase… Terra de velhos e de crianças… ou de jovens sem ambição, ou medrosos, ou tão pobres que nada possuíam de seu e desencorajavam quem pudesse emprestar-lhes dinheiro para a passagem. Durante várias gerações, cumpriu-se a tradição. Quase todos os homens emigravam para o Brasil. Os casados deixavam as mulheres no torrão a tomarem conta dos filhos e dos bens que o casal ia entretanto amealhando. Muitos constituíam outras famílias por lá, e só vinham de quando em quando passar umas férias. Era maior o tempo passado lá fora, do que o que passavam junto das suas legítimas famílias.
Também muitas mulheres não conseguiam resistir a esta solidão forçada e impiedosa e acabavam por sucumbir à insistência de algum galaró, procurando aconchego em outros braços viris que as ajudassem a encurtar as longas noites de ausência, e a darem vazão ao desejo e aos sentidos..
Um destes casais assim constituído encontrava-se clandestinamente no Cabeço, lugar da residência dela. Ele chegava de noite, simulava o piar do mocho e, passado um bocado, ela ia ao seu encontro.
As árvores de fruto naquela aldeia não abundavam. Terreno que possuísse uma árvore de fruto, tornava-se alvo da cobiça daqueles que procuravam encher a barriga e matar a fome naquelestempos de miséria. Ninguém gostava de ver as suas terras devassadas por ladrões de fruta, os quais, além de impedirem que os donos a pudessem saborear, davam cabo de outros cultivos ao avançarem descuidadamente pelos terrenos adentro, na mira de se encherem.
Mantinha-se, porém, no Cabeço, aquela frondosa cerejeira, talvez porque, como crescia no interior do terreno, não era de acesso fácil à vista e exploração de quem passasse no caminho, não sentindo por isso, o seu dono, os efeitos dos predadores da fruta.
Mas o casal conhecia bem os cantos da courela. Numas dessas noites, entendendo que aquelas ramagens cheias de folhagem, eram ideais para manter discreto o seu ninho de amor, veio deitar-se debaixo da árvore. Nem ele nem ela se aperceberam de que já alguém antes deles vira na árvore um poiso acolhedor e, a coberto da noite, se viera banquetear com os deliciosos frutos, bastando-lhe para tanto estender o braço e apanhar uma barrigada de cerejas. Quando este explorador se apercebeu de que chegara companhia, deixou-se estar calado e sossegado, sem vontade de denunciar a sua presença, não fossem acusá-lo de ladrão de fruta. Entretanto o casal preparava-se para ter ali as suas bem-aventuranças. Ela parecia um pouco renitente, e ele tentava convencê-la. No meio do “agarra-aperta”, foi ela apunhalada por um remoque de consciência e responsabilidade, e, no tom de voz meloso de quem julga não haver testemunhas das suas ilícitas intimidades, pergunta ao amante:
— E se engravido?
— Engravidas lá agora!
— Ai não! Só Aquele que está lá em cima é que sabe! — responde a mulher, assaltada por um pingo de devoção religiosa algo tardio.
Imagine-se o pânico destas almas, quando ouvem uma voz vinda de cima, que eles assumem, na sua ingenuidade, como sendo a resposta divina ao temor da adúltera:
— Essa agora! Eu para aí não sou tido nem achado! O problema é vosso!
Ei-los que correm, em pânico, desembestados, com as calças na mão ele, em camisa, ela, descomposta, com a trança desfeita a balouçar ao longo das costas…