"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

domingo, 26 de dezembro de 2010

A ti...


Mal acordei, senti um apelo interior e uma vontade enorme de regressar à velha casa outrora tão animada e agora abandonada às suas memórias.
O percurso que me separa da tua casa, cerca de sessenta quilómetros, foi feito com o pensamento em ti e uma grande paz interior a apossar-se gradualmente de mim, à medida que me ia aproximando da povoação.
Mal cheguei, distribuí dois beijos pelas faces da minha mãe e fui direita ao assunto.
— Mãe, dá-me as chaves da casa da avó, Quero lá ir.
Os olhos da minha mãe não puderam esconder a surpresa que aquele inesperado pedido lhe causou.
— Queres?! Espera aí, que eu vou contigo.
Olhei-a demoradamente, nos olhos, e disse:
— Não, mãe, quero ir sozinha. Dá-me as chaves.
Quando as chaves me passaram para a mão apertei-as e lá fui.
É quase com uma certa religiosidade que abro a porta exterior, ultrapasso o patamar de granito do rés-do-chão agora criminosamente coberto por cimento pintado de vermelho. Quando nos mudámos da casa da praça com tantas escadas e sem elevador, para o andar de baixo do casarão, concluiu-se que a tarefa de o esfregar uma vez por semana para o manter apresentável, era demasiado árdua para a minha mãe, a convalescer de uma pleurisia, que a atirara para um hospital durante quase um mês, e já sobrecarregada com a casa, os cuidados exigidos por três filhos pequenos…Dou a volta à chave que abre a porta que dá acesso à tua casa.
À minha frente ergue-se a velha escadaria de madeira, onde todos os meus irmãos e primos tiveram o seu baptismo caindo por ela abaixo em bebés, com excepção do Cassiano, o filho mais novo da tia Laurinda, sempre tão prudente e cuidadoso.
Então olho para cima e consigo ver-te, ao cimo das escadas, aguardando-me a tua figura simples, curvada pelo peso dos anos, mas com uma majestade e um brilho a espreitar-te nos olhos, ainda que parcialmente toldados pelas cataratas.
Apesar de conseguires identificar-nos pela voz, não resistias, e as tuas mãos percorriam-nos a cara, os braços, as mãos, tudo isto acompanhado por um sorriso nos lábios e no olhar, ao mesmo tempo que soltavas interjeições de prazer pela visita:
— Bom bem! Bom bem!
Agarro-me ao corrimão preto de ferro, que sempre conheci a querer soltar-se da parede, mas que foi resistindo, e ainda hoje lá permanece, na mesma, enfrentando a passagem dos anos e gerações. Vou contando um a um os degraus, agora adormecidos, votados ao esquecimento por aquelas mãos que durante anos e anos, ciclicamente, na altura das festas, as torturavam com o esfregão de arame, retirando-lhes o resto da antiga cera e as afagavam depois, com a cera nova, e as faziam ressurgir brilhantes, luminosas, após a passagem do lustro, afanosamente puxado até à exaustão.
No cimo do patamar, abro a porta à direita, e a sala-vestíbulo de soalho de longas tábuas carcomidas, estende-se à minha frente. É desta sala que guardo gratas recordações da minha infância. É uma sala luminosa, onde a luz jorra livremente pelas largas janelas de guilhotina, e pelas bandeiras da porta que se abre para um balcão de granito, que dá acesso ao jardim.
Ao fundo, a porta que acede ao teu quarto, e, à direita, mais duas portas: uma para a dispensa, outra para a sala de jantar, que comunica com o quartito onde eu dormi tantas noites, e com o outro quarto, mais amplo, que acolheu os meus pais quando se casaram, e onde nasci eu e os meus dois irmãos. Nesta sala passeiam os vultos que outrora a preencheram. Consigo ver-te, sentada naquela tua cadeira, a porta do quintal aberta, deixando passar uma larga faixa de luz que se desenha no chão. E tu, de preto vestida, penteias os teus longos cabelos, que depois entranças e enrolas num carrapito.
Os sons ecoam aos meus ouvidos. A minha mãe está sentada à máquina de costura, por baixo da janela, o tecido corre guiado pelas suas mãos hábeis e o rumorejar da máquina é para mim apaziguador.
Chegam-me os ruídos longínquos das conversas entre os vizinhos, cujas paredes traseiras das casas delimitam o jardim, o cacarejar das galinhas, e o arrulhar das pombas no pombal que o meu pai construiu. No balcão de granito, grandes manchas coloridas de sardinheiras…Ouvem-se cantares…
Deitada de barriga para baixo no chão da sala, de saia curta, camisola vermelha, ambas confeccionadas pela minha mãe, faço a cópia que, no dia seguinte, apresentarei à aprovação de uma professora exigente, autoritária e de humores imprevisíveis.
A felicidade que naquele momento me enche a alma é inexplicável…
Esses dias claros que então entravam pela tua casa, e se estendiam, intermináveis, perdidos nas melopeias por ti ciciadas enquanto entrançavas os teus longos cabelos mareados de branco, e na música entrecortada da máquina de costura habilmente comandada pela minha mãe, não mais os encontrei tão belos, tão claros, tão intermináveis…
Posso agora reconhecer, o quanto fui feliz na tua casa, querida avó!

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