"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

domingo, 24 de outubro de 2010

E ela sonhava...




Cresceu protegida pelo olhar super atento da mãe. Até à idade de entrar para a escola, não lidou com outros miúdos que não fossem os irmãos. A primeira infância passou-a ela com os familiares que viviam debaixo do mesmo tecto, entre as brincadeiras dos irmãos, o carinho da mãe, da avó materna, da tia-avó, e dos primos, tios e avós paternos, que constantemente se visitavam.
Os garotos da sua idade passavam a vida na rua, brincado uns com os outros, mergulhando os pés descalços na água que corria livremente pelos regos… A vida ao ar livre lia-se nas manchas que o sol lhes marcava na pele, nos cabelos crespos, revoltos, indomáveis, incompatibilizados com o pente, nas calças arregaçadas, maiores que a cintura que as transportava, ajustadas com baraços de sisal ou de algodão, ou tiras de farrapos cruzadas no peito, a fazerem de suspensórios… Crescia-lhes a liberdade nos olhos, nos gestos, nos risos…
Os seus domínios eram a rua e neles reinavam, desde o nascer ao pôr-do-sol. Era então que eles iam desaparecendo, um por um, sem deixar rasto, ao som de gritos que, como o vento, esquadrinhavam os escaninhos das vielas, e até eles chegavam. Gritos que eles reconheciam com poder, gritos que cada um identificava e reconhecia como sendo dirigidos a cada um, gritos que os reconduziam a casa, gritos carregados de ameaças, castigos, pobreza, sofrimento, suor…
E cada nome gritado tinha o condão de reduzir cada pequeno rei das ruas à plebeia condição de filho, neto, sobrinho, irmão…
Ela não tinha autorização para ficar na rua. Por vezes atravessava a praça em direcção à srª Elvira, com os dois tostões bem apertados na mão com que comprava uma romã, mais pelo fascínio daquela fruta misteriosa do que pelo prazer de a comer. E ficava ali a vê-los, desejosa de se juntar a eles, perdida no tempo… A cantiga da água a correr, e o desejo de nela mergulhar os pés, caminhando descalça pelos regos, era como a melodia encantatória das sereias a tentar Ulisses e os seus companheiros…Quando por fim a procuravam, já ela estava descalça, tentando a aproximação ao grupo. E, sem palavras, apontava para os meninos. A resposta era invariavelmente a mesma “ os meninos andam descalços porque não têm sapatos, os meninos andam na rua porque não têm dono”…
E ela sonhava que um dia, também não teria dono…

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