"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

História com final feliz




O começo de mais um ano lectivo. Na primeira aula, fito, um por um, os rostos dos meus meninos do ano passado. Mais espigadotes, sobretudo as raparigas, mas nem todos necessariamente mais maduros. Ao fazer a chamada pela pauta, dou conta da correcção de um hiato que existiu durante todo o ano lectivo passado. E a história do Zé ocorre à minha memória. Este foi o texto que, no ano passado escrevi, e que agora lhe dedico.

No início de cada ano lectivo fico sempre na expectativa, relativamente aos novos alunos que me serão entregues. Este ano não foi excepção, tanto mais que iria pegar em turmas do 5º ano, uma vez que os meus meninos do ano passado e que recebi também no quinto ano, estão agora no sétimo, feitos uns homenzinhos e umas senhoras, em plena adolescência uns, outros a entrar nela…
É extremamente gratificante e um motivo de satisfação pessoal, quando passo nos corredores da escola e sou saudada calorosamente por quase todos eles, dado que alguns são menos dados a manifestações exteriores. Mas, mesmo assim, saúdam-me, mais timidamente, como é compreensível.
A adaptação destes meninos é quase sempre dolorosa…São muitas mudanças para assimilar de uma assentada… espaço novo, enorme, para quem estava restringido a pouco mais de quatro salas, obrigação de mudar de salas consoante a disciplina, ter de consultar um horário, disciplinas diversas, vários professores, cada um com as suas particularidades, passar apressadamente os registos do quadro, antes que eles sejam apagados, funcionários novos, passar cartão para entrar na escola, passar cartão para sair, fila para ir ao bar, fila para o refeitório, matulões a passarem à frente na fila, a pregarem rasteiras nos corredores, ter que engolir a raiva em seco, senão… ter que comer tudo o que está no prato, quer se goste ou não, “quem não gosta come menos ou vai comer a casa”, sob risco de ficar no refeitório indefinidamente até o prato estar limpo…
Para todas estas situações fiquei mais sensibilizada quando os meus próprios filhos passaram por lá…Vi o que até ali me passara ao lado…Vi as coisas pelos olhos deles, auscultei-lhes as dores como mãe…
Mas voltando aos meus novos meninos…
Nos primeiros dias olhei-os nos olhos, consciente de que a empatia é muito importante para poder prosseguir esta missão…falei com eles sempre sorrindo, quis saber coisas deles…
Procurei cumprir aquilo a que me proponho sempre: fixar-lhes rapidamente os nomes, o que, dado a memória não estar a ficar mais célere, de ano para ano é mais difícil…
Nestas primeiras abordagens fui-me apercebendo não só das fragilidades de alguns deles, como também das idiossincrasias que necessitam de ser contornadas. Este ano, os meninos são mais infantis, não cumprem regras, dispersam-se facilmente, não ouvem o que lhes é pedido, interrompem a aula com perguntas a questões que acabaram de ser explicadas, falam todos ao mesmo tempo, não aguardam a sua vez para falar… Sai-se de uma aula como se se tivesse acabado de correr uma maratona…Mas não podemos ficar indefinidamente a insistir nas regras… é preciso avançar com o desenvolvimento das competências específicas de cada disciplina…
Há dias o Zé não estava na aula. Quando perguntei por ele, disseram-me que estava maldisposto, e tinha ido beber um chá.
Mais tarde a directora de turma falou comigo: miúdo muito sensível, com dificuldades em adaptar-se…Já tinha passado na psicóloga, que conversara com ele.
Na aula seguinte, o Zé já estava bem. Óptimo!
Passados dias, a directora de turma, no intervalo, mesmo antes da minha aula, chamou-me de parte: o Zé chorava que nem uma Madalena, lágrimas gordas e sentidas…a aula seguinte era comigo…
Quando cheguei ao fundo das escadas, lá estava o Zé, chorando, “por causa dos nervos,” como, com a voz entrecortada, explicou.
— Ó Zé, eu percebo que estejas nervoso, mas olha que não há motivo para isso! Vá, vamos lá! — e, rodeando-lhe os ombros, cometi uma infracção, conduzindo-o pelas escadas que são vedadas aos alunos.
— Vamos por aqui para ser mais depressa, mas olha que os meninos não podem passar por aqui! Bom, mas como estás comigo, e para não deixarmos os teus colegas à espera, vamos lá.
O Zé subiu comigo e, decorridos uns momentos na aula, parecia que nunca se tinha passado nada.
Entretanto fui sabendo de várias situações que se repetiram com outros professores, e noutras aulas. Passado quase um mês de aulas, “o nosso Zé”, como dizia a directora de turma, continuava a sofrer dos nervos de inadaptação. A mãe veio buscá-lo algumas vezes sem ter acabado o período de aulas, a psicóloga conversou várias vezes com ele, a directora de turma a mesma coisa. Voltou a repetir-se a cena com o Zé ao fundo das escadas à minha espera. Os olhitos dele, inundados pelas lágrimas, lembravam os de um cachorrito que pede mimos ao dono E, mais uma vez, fui reincidente na infracção ao Regulamento Interno, para bem do Zé.
Por vezes apercebia-me das conversas durante os intervalos entre o garoto e a directora de turma. Um dia vi a mãe do Zé largá-lo à porta da escola, e arrancar sem olhar para trás—coitada da senhora! — enquanto o corpito franzino do Zé, sacudido por soluços e rosto lavado em pranto, se arrastava penosamente para dentro dos portões.
Nos dias em que o Zé conseguia ser mais forte do que os nervos, eu dava-lhe os parabéns. Já todos sabíamos que o Zé gostava da escola, dos funcionários, dos colegas, dos professores, mas os nervos dele é que não queriam saber disso para nada.
Um dia a directora de turma, num desses dias em que resolvera acarinhar ainda mais o miúdo, e tirando partido do facto de a disciplina por ela leccionada, Religião e Moral, ser perfeitamente propícia a uma descontracção de que as disciplinas curriculares não beneficiam, andava a passear com ele pelo átrio da escola, tentando que o Zé esquecesse os nervos e arrancar-lhe algumas gargalhadas, ou, pelo menos, alguns sorrisos. A colega, que é uma pessoa extraordinariamente bem-disposta, de personalidade histriónica, fazia uso dos seus dons performativos. Ao passarem por uma sala do rés-do-chão onde se leccionava uma disciplina de EVT, cujas janelas estavam abertas, de que se havia de lembrar a professora? Apercebeu-se quem eram as colegas que davam aulas na sala e pensou que elas não lhe levariam a mal, uma vez que era por uma boa causa. Disse para o rapaz:
— Ó Zé, vamo-nos esconder e vamos pregar um susto a esta malta.
Agacharam-se, encostadinhos à janela, e, a um sinal da DT levantaram-se ao mesmo tempo, e gritaram para dentro da sala:
— Huuuuuuuuuuu!
Lá de dentro, vem um grande rebuliço, e, descomandados, os alunos vêm à janela. A directora de turma, ri, juntamente com o Zé, e o resto dos alunos. As professoras assomam à janela e repreendem, bem-dispostas, a colega:
— Estas maluquices só tuas!
Mas algo se passa. O Zé, de olhos bem abertos, como se refém de uma descoberta inexplicável, murmura, preso de um encantamento que comoveu até às lágrimas a sua professora:
— Os meus colegas! …
— São os teus colegas da escola primária, Zé? — confirma a professora. O Zé não tem palavras. Diz que sim com a cabeça, enquanto um sorriso tímido lhe aflora o rosto.
É então que a professora toma uma decisão. Entra pela sala adentro, dá duas palavras às professoras de EVT, e deixa o Zé na sala, na companhia dos seus colegas e sob a supervisão das professoras da turma, que logo distribuem uma tarefa ao miúdo. Dirige-se ao gabinete do Director. Dali vai fazer um telefonema à mãe do Zé, e, passando por cima do parecer da psicóloga, que opinava que não se deviam fazer as vontades ao garoto, que ele iria ultrapassar e a sua autonomia sairia reforçada ( o que certamente acabaria por acontecer, não sabemos a que custo), põe-se a mexer os cordelinhos para que o Zé possa juntar-se aos seus colegas.
Hoje tive uma boa notícia. O Zé já não faz parte dos meninos da minha turma. Mas anda por aí, e veio engrossar o grupo daqueles que, não sendo já meus alunos, me saúdam com entusiasmo.

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