"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Aparências




Não é alta nem baixa, nem magra nem gorda, nem nova nem velha…
Os cabelos curtos, castanhos e encaracolados, emolduram-lhe o rosto redondo e moreno, onde sobressaem os olhos castanhos, vivos e perspicazes, os quais olham invariavelmente de cima, mantendo a pálpebra bem esticada. É frequente olhar o seu interlocutor pelo “rabo do olho”.
O seu sorriso constante é frequentemente assaltado por um subtil repuxar, do lado esquerdo, em direcção à orelha do mesmo lado, como se comandado pelas mãos invisíveis e caprichosas de um manuseador de marionetas.
Mas, de tal sorriso constante e frequente, não deverá inferir-se a simpatia da personagem. Efectivamente, quando com ela lidamos de perto, verificamos que de simpática ela não tem nada. Veste o seu sorriso (sem que disso se aperceba), em consonância com o sentimento que as pessoas lhe provocam: frieza, desdém, repulsa, condescendência ou ternura, este exclusivamente reservado `a família, reduzida às duas filhas que lhe ficaram de um divórcio litigioso e devastador.
Que se desiludam aqueles que, estimulados pela frequência do seu sorriso, se aproximam na mira de com ela estabelecer uma relação de amizade…Ela lançar-lhes-á um sorriso que congelará indefinidamente esse pretenso devaneio.
Aparentemente atenciosa com as pessoas, mantém-nas à distância disparando sempre uma frase curta, directa e seca, para repor no seu lugar aqueles que tentam, incautamente, com ela iniciar um contacto que possa ultrapassar os limites do mero conhecimento. E, se o não fizer, não deverá atribuir-se tal facto a falta de inspiração ou oportunidade momentâneas, mas tão somente à decisão de aguardar o momento mais favorável para então lançar, como uma granada, a frase que deixará em estilhaços o desejo de com ela privarem de perto.
Fala de uma maneira calma, segura de si. Em situação de confronto verbal, dificilmente admitirá não ser senhora da razão. Aliás, qualquer disparate saído da sua boca fará nascer no seu interlocutor o desejo de com ela defender a ideia mais estapafúrdia, como se de uma verdade insofismável se tratasse!
Destaca-se, no seu caminhar, o movimento pendular das ancas, ora para a esquerda, ora para a direita, num gingar ritmado e algo exagerado Acompanha este movimento, como uma batuta, o nariz, o qual, deixando por momentos de apontar para as nuvens, se recolhe em direcção aos pés, caprichosamente calçados com modelos dos melhores estilistas italianos. Esta é, aliás, a única extravagância a que ela se permite, seu “fétiche”.
****
Meteu a chave na porta depois de ter demorado quase cinco minutos a procurá-la na carteira. Inútil tocar a campainha. O apartamento estava vazio, tal como ela. Este fim-de-semana as filhas ficavam com o pai.
Mal atravessou o umbral da porta despiu a sua pose. O seu olhar humanizou-se, os ombros descaíram-lhe e ela caminhou lentamente em direcção ao sofá da sala. Descalçou as botas de pele envernizada e colocou-as direitinhas, uma ao lado da outra. Observou-as longa e compenetradamente. Mirou-as de um lado, depois do outro. Depois pegou nelas e as suas mãos passearam-se demoradamente pelo calfe macio. Aspirou-lhes o aroma profundamente. Acariciou as, sentindo-lhes a suavidade. Depois num gesto inusitado, apertou-as ao peito, ao mesmo tempo que dos lábios deixava escapar um longo suspiro, vindo do mais profundo das suas entranhas. Do seu olhar desprendia-se uma enorme tristeza, a qual, conjugada com o rictus que lhe marcava os cantos da boca, lhe conferia uma pesada amargura.
Dispôs novamente as botas uma ao lado da outra. Puxou a manta que descansava num dos braços do sofá de camurça branca, estirou-se preguiçosamente e cobriu–se. Ajeitou uma das almofadas debaixo da cabeça e fechou os olhos. O ritmo cadenciado da sua respiração tomou conta dela e, por algum tempo, ela pôde, enfim, descansar.

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