"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

O pão




A massa branca e leitosa era afagada e torneada pelas suas mãos, até lhe dar o formato pretendido, até ficar bem redonda, como o ventre de uma mãe prestes a dar à luz.
Os meus olhos seguiam-lhe todos os movimentos. O seu olhar emanava um contentamento cansado, presente também nos gestos. Um último esforço, para se desprender dos bocados de massa branca que lhe cobriam as mãos e os braços quase até aos cotovelos, e ajeitar a bola redonda e perfeita, que ia surgindo. Vira-a peneirar a farinha, deitá-la na masseira, aconchegá-la em monte e abrir uma cova no meio, misturar a água fumegante aos poucos e poucos, que se escapava formando pequenos regos que ela ia buscar com as sua mãos sábias, para a reconduzir àquela amálgama que se ia formando. As suas mãos penetravam na farinha, em movimentos ritmados, e ela atirara-se com ardor à tarefa de amassar aquela mistura, para cá e para lá, depois o sal, e o fermento, e mais água, e as mãos que não paravam…depois retirou um pouco de massa, que colocou numa malga à parte. A sua respiração era ofegante, mas eu sentia-a satisfeita. Com os dedos polegar e indicador da mão direita, a fazer de pinça, agarrou num bocadinho de massa, marcando-a. Era este o sinal que lhe iria permitir reconhecer o seu pão no meio de todos os outros, quando fosse a altura de o resgatar do forno comunitário. Finalmente, o último retoque, com ambas as mãos rodeando a bola. Soergueu-se. Foi traçando uma cruz com a mão direita em riste sobre aquela barriga, ao mesmo tempo que dos seus lábios saía a oração ritual:
— Deus te acrescente e te livre de má gente. Nossa Senhora da Conceição te faça um formoso pão.
Depois seguiu-se a lavagem das mãos, e a masseira foi coberta com um panal de linho. Por cima, um cobertor de lã, para que se mantivesse quente e levedasse. Agora era preciso aguardar que, sob o panal, a oração se consumasse no crescimento do pão. Era preciso que o pão levedasse, o que iria levar cerca de duas horas, mas, até poder ser saboreado, ainda tinha que atravessar um longo processo: a forneira de um dos fornos comunitários viria buscar a masseira, e levá-la-ia à cabeça, assente numa rodilha, até ao forno, onde cozeria durante uma hora. Entretanto, já a minha mãe teria chegado, para talhar a massa em boroas, que iriam ser bailadas nas tigelas pelas bailadeiras, conferindo-lhes o aspecto arredondado. Num forno havia três a quatro bailadeiras, que eram pagas por cada freguesa (chegavam a ser vinte de cada vez), com um pedaço de massa, assistindo-lhes também o direito de rapar e lavar as masseiras, cuja lavagem se destinava a alimentar os porcos.
O forno estava agora pronto. As brasas iam sendo distribuídas pelas braseiras de zinco, trazidas pelas mulheres, que aguardavam pelo conforto que aquelas brasas trariam às suas casas. No interior daquela bocarra escancarada sumiam-se uma por uma as bolas brancas, depositadas com o auxílio de uma grande pá pela forneira, e que sairiam transformadas em deliciosas boroas. Aos meus olhos de menina atenta, nada disto passava despercebido, e eu tudo registava.
Algumas mulheres por ali ficavam, aguardando a cozedura do forno. Outras regressavam a casa, voltando uma hora depois para identificar o seu pão. Algumas horas atrás, andara a forneira pelas ruas da aldeia, apregoando, em altos brados:
— Ó Ermeliiiiiinda! Huuuuuu! É pr´á amassar!
E os seus gritos ouviam-se por toda a aldeia. E, àquela ordem, cada uma das mulheres assim invectivadas, se recolhia ao seu lar cumprindo o papel que lhe competia na tarefa sagrada de conceber o pão que iria alimentar a família.
Enquanto no forno as bailadeiras bailavam as boroas das suas freguesas, em casa outras mulheres estariam a acabar de aprontar a massa para a fornada seguinte.
O calor do forno, o momento de reunião, de espera descontraída, eram propícios à partilha de ditos e mexericos, desnudava-se a alma, desvendavam-se segredos, que aproximavam ou afastavam as comadres… Era digna de se ver a entrega do pão.
— Belisco e buraco! — gritava a forneira!
— É meu! — respondia a dona.
— Belisco, belisco!
— É meu!
— Ferro!
— Esse é o meu!
E, assim sucessivamente, o pão quente ia sendo entregue e desaparecendo debaixo do panal branco que cobria as masseiras de cada dona de casa.
— Ó Maria do Carmo! Empresta-me uma boroa, que eu já só cozo para a semana!
Quando a masseira regressasse, com boroas quentes, castanhas, cheirosas, redondas, de côdea consistente, era altura de proceder à sua distribuição pelas vizinhas que as haviam emprestado, ou de emprestar a quem já não tivesse. Desta maneira, através de uma relação de boa vizinhança e de hábil gestão, se garantia o consumo do pão relativamente fresco. Quando estava a acabar, havia sempre quem emprestasse, ou pagasse, uma boroa proveniente de uma fornada mais recente.


domingo, 26 de dezembro de 2010

A ti...


Mal acordei, senti um apelo interior e uma vontade enorme de regressar à velha casa outrora tão animada e agora abandonada às suas memórias.
O percurso que me separa da tua casa, cerca de sessenta quilómetros, foi feito com o pensamento em ti e uma grande paz interior a apossar-se gradualmente de mim, à medida que me ia aproximando da povoação.
Mal cheguei, distribuí dois beijos pelas faces da minha mãe e fui direita ao assunto.
— Mãe, dá-me as chaves da casa da avó, Quero lá ir.
Os olhos da minha mãe não puderam esconder a surpresa que aquele inesperado pedido lhe causou.
— Queres?! Espera aí, que eu vou contigo.
Olhei-a demoradamente, nos olhos, e disse:
— Não, mãe, quero ir sozinha. Dá-me as chaves.
Quando as chaves me passaram para a mão apertei-as e lá fui.
É quase com uma certa religiosidade que abro a porta exterior, ultrapasso o patamar de granito do rés-do-chão agora criminosamente coberto por cimento pintado de vermelho. Quando nos mudámos da casa da praça com tantas escadas e sem elevador, para o andar de baixo do casarão, concluiu-se que a tarefa de o esfregar uma vez por semana para o manter apresentável, era demasiado árdua para a minha mãe, a convalescer de uma pleurisia, que a atirara para um hospital durante quase um mês, e já sobrecarregada com a casa, os cuidados exigidos por três filhos pequenos…Dou a volta à chave que abre a porta que dá acesso à tua casa.
À minha frente ergue-se a velha escadaria de madeira, onde todos os meus irmãos e primos tiveram o seu baptismo caindo por ela abaixo em bebés, com excepção do Cassiano, o filho mais novo da tia Laurinda, sempre tão prudente e cuidadoso.
Então olho para cima e consigo ver-te, ao cimo das escadas, aguardando-me a tua figura simples, curvada pelo peso dos anos, mas com uma majestade e um brilho a espreitar-te nos olhos, ainda que parcialmente toldados pelas cataratas.
Apesar de conseguires identificar-nos pela voz, não resistias, e as tuas mãos percorriam-nos a cara, os braços, as mãos, tudo isto acompanhado por um sorriso nos lábios e no olhar, ao mesmo tempo que soltavas interjeições de prazer pela visita:
— Bom bem! Bom bem!
Agarro-me ao corrimão preto de ferro, que sempre conheci a querer soltar-se da parede, mas que foi resistindo, e ainda hoje lá permanece, na mesma, enfrentando a passagem dos anos e gerações. Vou contando um a um os degraus, agora adormecidos, votados ao esquecimento por aquelas mãos que durante anos e anos, ciclicamente, na altura das festas, as torturavam com o esfregão de arame, retirando-lhes o resto da antiga cera e as afagavam depois, com a cera nova, e as faziam ressurgir brilhantes, luminosas, após a passagem do lustro, afanosamente puxado até à exaustão.
No cimo do patamar, abro a porta à direita, e a sala-vestíbulo de soalho de longas tábuas carcomidas, estende-se à minha frente. É desta sala que guardo gratas recordações da minha infância. É uma sala luminosa, onde a luz jorra livremente pelas largas janelas de guilhotina, e pelas bandeiras da porta que se abre para um balcão de granito, que dá acesso ao jardim.
Ao fundo, a porta que acede ao teu quarto, e, à direita, mais duas portas: uma para a dispensa, outra para a sala de jantar, que comunica com o quartito onde eu dormi tantas noites, e com o outro quarto, mais amplo, que acolheu os meus pais quando se casaram, e onde nasci eu e os meus dois irmãos. Nesta sala passeiam os vultos que outrora a preencheram. Consigo ver-te, sentada naquela tua cadeira, a porta do quintal aberta, deixando passar uma larga faixa de luz que se desenha no chão. E tu, de preto vestida, penteias os teus longos cabelos, que depois entranças e enrolas num carrapito.
Os sons ecoam aos meus ouvidos. A minha mãe está sentada à máquina de costura, por baixo da janela, o tecido corre guiado pelas suas mãos hábeis e o rumorejar da máquina é para mim apaziguador.
Chegam-me os ruídos longínquos das conversas entre os vizinhos, cujas paredes traseiras das casas delimitam o jardim, o cacarejar das galinhas, e o arrulhar das pombas no pombal que o meu pai construiu. No balcão de granito, grandes manchas coloridas de sardinheiras…Ouvem-se cantares…
Deitada de barriga para baixo no chão da sala, de saia curta, camisola vermelha, ambas confeccionadas pela minha mãe, faço a cópia que, no dia seguinte, apresentarei à aprovação de uma professora exigente, autoritária e de humores imprevisíveis.
A felicidade que naquele momento me enche a alma é inexplicável…
Esses dias claros que então entravam pela tua casa, e se estendiam, intermináveis, perdidos nas melopeias por ti ciciadas enquanto entrançavas os teus longos cabelos mareados de branco, e na música entrecortada da máquina de costura habilmente comandada pela minha mãe, não mais os encontrei tão belos, tão claros, tão intermináveis…
Posso agora reconhecer, o quanto fui feliz na tua casa, querida avó!

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Natal chique



NATAL CHIQUE
Percorro o dia, que esmorece
Nas ruas cheias de rumor;
Minha alma vã desaparece
Na muita pressa e pouco amor.
Hoje é Natal. Comprei um anjo,
Dos que anunciam no jornal;
Mas houve um etéreo desarranjo
E o efeito em casa saiu mal.
Valeu-me um príncipe esfarrapado
A quem dão coroas no meio disto,
Um moço doente, desanimado…
Só esse pobre me pareceu Cristo.

Vitorino Nemésio

sábado, 27 de novembro de 2010

Desilusões...


A vontade de ir para a escola era maior, muito maior que o seu reduzido tamanho.
Continuamente interrogava a mãe sobre a altura em que chegaria esse dia. A mãe ia refreando aquele entusiasmo, como podia. De facto, não estava certa de que Lurdes pudesse frequentar a escola no mês de Outubro que se avizinhava. A sua inscrição havia sido condicional, como já fora a de António. Lurdes já tinha seis anos, mas, para poder entrar nesse ano, devia fazer os sete anos até Dezembro, o que não acontecia.
A mãe de Lurdes sentia a filha suficientemente madura e motivada para iniciar o seu percurso escolar. De há uns tempos a esta parte, não falava noutra coisa. É claro que a essa ansiedade não terá sido alheio o facto de o irmão mais velho já frequentar a escola. Mas António, apesar de ter nascido em Janeiro, tivera a seu favor o reduzido número de rapazes em idade escolar, nesse ano, que não ocuparam as vagas existentes, e pôde, assim, ser matriculado com seis anos, apesar de fazer os sete no ano seguinte, gozando da excepção inserida na lei “desde que houvesse vaga”. Havia muitas raparigas em idade escolar naquele ano. Eram oito salas, quatro destinadas aos rapazes, e quatro destinadas às raparigas. Só no mês de Outubro é que se saberia se a matrícula seria efectivada. Lurdes andava num desassossego!
Ao ser informada de que Lurdes ficaria de fora, e perante o inconformismo da rapariga, que vira cair por terra o seu sonho, alimentado durante um ano lectivo pelo irmão, e que o extravasava entregando-se a um caudaloso, líquido e ruidoso desgosto, a mãe recorreu às sobrinhas, ambas professoras, numa tentativa de poder contornar a lei. Sim, a rapariga poderia entrar, desde que fosse matriculada numa escola exterior, e frequentasse essa escola durante algumas semanas, após o que pediria a transferência, não podendo, neste caso, ser-lhe recusado o acesso. E a esperança renasceu na mãe e na filha. Lurdes deu em colar os ouvidos nas conversas telefónicas mantidas entre a mãe e as professoras. Poderia entrar, sim! Bastava que fosse acompanhada de um cartão da directora da escola da zona de residência onde Lurdes pertencia. Mas a mãe de Lurdes não queria que a directora, que era também professora, soubesse do que se tramava nas suas costas, além de que acolhia no seu seio receios de futuras represálias sobra a criancinha .
Conclusão: Lurdes largou as momentâneas tréguas a que se entregara, e abriu o dique, agora com muito mais força. Quando se cansou, virou-se para outro lado: cercava o irmão, quando este regressava da escola, e crivava-o de perguntas, às quais ele ia respondendo com alguma paciência.
Perante os olhos da irmã ele sentia-se um herói e ia fazendo render esse estado de graça. Desde cedo, Lurdes manifestou maior interesse pelo livro de leitura. Pegava no que fora o do irmão, e ia-o questionado sobre as imagens do livro. Só que António recriava e fantasiava aquelas imagens inventando histórias mais adequadas à sede do imaginário dos dois.
Só mais tarde, quando Lurdes aprendeu a ler, é que percebeu o logro em que caíra, ao verificar que, afinal, aquelas maravilhosas histórias urdidas pelo irmão, em nada se pareciam com as frases simples, sem qualquer enredo, repetitivas e irreais, que ela era obrigada a cantarolar incessantemente. Este foi o primeiro choque que arrefeceu o seu entusiasmo pela escola . Outros se lhe seguiriam.



Cumplicidades


O irmão mais velho era o seu companheiro das brincadeiras. O outro, mais novo, ainda não largara as saias da mãe, o que lhes dava alguma liberdade, para cultivarem cumplicidades que às vezes redundavam em asneiras fortemente castigadas pelo pai, que era bastante severo. A mãe, embora soubesse que ali na aldeia toda a gente se conhecia, não gostava que os garotos andassem na rua, sem que ela soubesse exactamente onde estavam. Às vezes pediam para irem ter com o pai à loja, e, como era pertinho, lá os deixava ir, sempre bem arranjadinhos, como fazia questão. Outras vezes, era ela própria que os mandava irem chamar o pai para almoçar, tarefa de que eles se saíam bem, estimulando-lhes a autonomia e a auto-estima. Gostava de os responsabilizar dando-lhes pequenas tarefas que sabia que eles conseguiam realizar, com um objectivo bem definido, mas não de os deixar ir brincar para a rua.
Um dia saíram os dois, dizendo que iam ter com o pai. A mãe, às voltas com o almoço e com os cuidados ao irmão mais novo, descurou um pouco as recomendações habituais. Como não levavam nenhum recado específico para o pai, quando chegaram perto da loja, António continuou o caminho, seguindo para a parte mais alta da aldeia.
— Onde vamos? — perguntou Lurdes.
— A casa dos avós do alto. Queres?
— Quero!
António era o irmão mais velho de Lurdes. O pai estava sempre a dizer-lhe que ele, como mais velho, tinha que tomar conta da irmã. E era isso que ele fazia, sugerindo as brincadeiras, e decidindo, sem dar hipótese à irmã de as recusar ou sugerir outras, o que, aliás, era inútil, pois Lurdes gostava muito do irmão e o que ele fizesse, estava bem feito.
Bateram à porta dos avós, mas, claro que, àquela hora, eles não estavam. O avô trabalhava na fábrica de lanifícios, saía de manhã, e, quando estava bom tempo, ia até à propriedade que possuía na encosta da serra, onde tinha algum gado e courelas.. A avó, na altura das sementeiras ou colheitas, passava lá também o dia e regressavam ambos ao sol- posto. Por vezes até por lá dormiam. Mas os garotos eram ainda muito pequenos para se aperceberem dos mecanismos que comandam a vida dos adultos. Ficaram por momentos a olhar um para o outro. Tinham que aproveitar aquela liberdade que lhes caía do céu.
— Vamos brincar!
— Vamos!
Ajoelharam-se no chão da Carvalha, e, com as mãos, começaram a cavar buracos no chão. A terra ali era fofa e mole. Por isso, a empresa que se propuseram levar a cabo não foi de molde a desmotivá-los dos seus propósitos. Não tardou muito e veio juntar-se-lhes um menino que eles conheciam. Vivia em Lisboa, mas estava de férias com os pais, que eram amigos dos avós de Lurdes e António.
— Olá! Que estão a fazer?
— Uma garagem para a camioneta! — respondeu o António
— Ah! E onde está a camioneta? — perguntou o Luizinho
— Está em casa.
— Eu vou buscar a minha, está bem?
— Está!
Os dois irmãos continuaram as suas escavações, a Lurdes mais espectadora do que operária.
Passado um bom bocado chegou o Luizinho.
— Demoraste! — observou o António.
— A minha mãe disse que só podia vir depois de comer.
— Ah!
Lurdes pensou que eles ainda não tinham comido, mas não tinha fome. Aliás, Lurdes nunca tinha fome. Comer, para ela era um verdadeiro suplício. Por isso era tão magrinha, e tinha um ar tão amarelo. Mas era saudável, e isso é que era importante. A mãe já a tinha levado ao médico por ela comer tão mal, mas o médico dissera que aquilo havia de passar…
Luís chegou com um camião de madeira, como eles nunca tinham visto!... era enorme, vermelho e azul, e a parte de trás virava-se, para deitar a terra fora. Ficaram ali, deliciados, esquecidos do mundo…Fizeram estradas para a camioneta passar, e montes de terra para ela subir e descer.
Mas a brincadeira acabou interrompida de uma maneira brusca…De repente cada um dos dois irmãos sentiu-se fortemente agarrado por um braço. À frente deles, o pai espumava de raiva.
— Onde se meteram, seus vadios? Sabem que horas são?
Nos olhos dos dois irmãos lia-se o terror. Não deram resposta, nem era para dar. Mas o ar do pai não deixava margem para dúvidas sobre a natureza do castigo que ele estava a engendrar. Sacudindo-os rispidamente, com modos bruscos e agressivos, agarrou-lhes os pulsos, o que fez com que o António soltasse um gemido de dor. A resposta foi duas valentes palmadas no rabo que o puseram a chorar. Em seguida, tirou uma corda de algodão do bolso e prendeu os dois irmãos um ao outro, como se de dois criminosos se tratasse. A outra ponta da corda enrolou-a à volta da sua mão direita.
— Vamos lá! Se é preciso prender-vos para saber por onde andam, é isso que vão ter.
Lurdes tinha escapado às palmadas, mas não à humilhação. Sem uma palavra, desceram a rua, e foram conduzidos a casa. A mãe estava aflita, e zangada.
— Pensei que vos tinha acontecido alguma coisa! É tardíssimo! Saíram daqui há mais de três horas! Não tendes fome?
Os garotos não responderam. Receavam que, se falassem, enfurecessem ainda mais o pai.
— Dá-lhes de comer que eu já os venho buscar! — ordena o pai
— Mas …e as cordas? Para que são as cordas?
— Deixa estar as cordas, que eles vão aprender uma lição que nunca mais na vida vão esquecer!
O pai saiu. Então os miúdos lá se abriram com a mãe.
— Mas nem mesmo quando o Luizinho disse que tinha estado a comer se lembraram que era tarde?
Que não, nem derem conta do tempo a passar, e o camião do Luizinho era tão lindo!
O António, só naquela altura se apercebeu de que estava esfomeado. A Lurdes nem tanto. Mas a sopa de couve ripada soube-lhe bem, contrariamente ao habitual.
O pai não tardou a regressar. Agarrou nas cordas e ordenou-lhes que o seguissem. Quando a mãe o questionou sobre as suas intenções, respondeu-lhe que ia fazer deles uns adultos. É possível que nesse momento ele lhes tenha roubado alguma dose de inocência. Os garotos saíram de casa, preocupados em acompanhar os passos do pai, para que ninguém notasse que iam presos. Chegados à loja, a primeira reacção de ambos foi dirigirem-se para a parte interior do balcão, para que os clientes que entrassem os não pudessem ver. Mas não era essa a intenção do pai. Sempre que algum cliente entrava na loja, obrigava os garotos a mostrarem-se, e exibia-os, como se tratasse de animais amestrados de um circo. A todos repetia a história, e vangloriava-se da lição exemplar que estava a dar aos filhos. Houve quem o felicitasse, quem o censurasse.
Quem pudesse ler no olhar de Maria de Lurdes o que lhe ia na alma, poderia sentir a tristeza e a vergonha que a consumiam, não por ela, mas por causa da piedade que ela lia nos olhos das outras pessoa…Como fora o pai capaz de os sujeitar e sujeitar-se àquela humilhação?

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Transparências



Às profundezas
Do teu olhar
Assomei
Banhadas outrora
De luminosa transparência
De cristal…

Golpeada
Por negras e violentas
Enxurradas
Deixei-me arrastar
Na floresta submersa
Pela tempestade
E no rasto da tua alma
Me perdi…

O teu olhar
Agora procuro
Naufragado
Em todos os olhares
Que olho.
Para te conduzir
A porto seguro.

sábado, 30 de outubro de 2010

Avó e neta




A casa da avó era como a maior parte das casas da aldeia: embora tivesse electricidade, não possuía água canalizada nem esgoto.
Era preciso ir à fonte acartar a água que corria livremente e encher os baldes e os cântaros de folha-de-flandres tantas vezes quantas as necessárias. A higiene pessoal limitava-se à lavagem diária da cara, mãos e pescoço, com a água fria que ficava de reserva nos jarros dos lavatórios de esmalte. Aos domingos, a água a ferver nos depósitos dos fogões a lenha, vertia-se nas enormes bacias de zinco onde se tomavam os banhos. As necessidades faziam-se nos bacios, que eram esvaziados para os baldes que todos os dias de manhã era necessário ir despejar à ribeira. A roupa era também lavada na ribeira, e constituía para a maior parte das raparigas da aldeia uma ocasião para porem a conversa em dia, falarem dos seus conversados, efectivos ou sonhados. As mulheres casadas, quando o tempo o permitia, levavam as crianças, que se entretinham na brincadeira umas com as outras, com a água até aos joelhos, chapinhando, ou na caça de bordalas e rãs.
A mãe de Lurdes lavava a roupa em casa, num tanque de cimento, acompanhando os tempos modernos…Mas quem geralmente ia despejar os baldes à ribeira, era a avó. Lurdes sentia o apelo da rua, para onde adorava esgueirar-se … Mas a mãe vigiava-a. Por isso, sempre que a avó punha a rodilha à cabeça e ajeitava o balde para se dirigir à ribeira, vinha o pedido insistente:
— Também quero ir! Deixe-me ir consigo, avó!
— Deus te livre! Podes por lá cair!
E os pedidos de Lurdes caíam em saco roto. Mas ela não desistia, e, sempre que dava conta daquele ritual, lá estava ela, fazendo marcação cerrada à avó.
— Deixe-me ir, avó! Eu não caio! Eu porto-me bem! Eu não saio de ao pé de si. Eu já sou uma mulher, avó, pois não sou?
Lurdes sentiu uma ligeira hesitação na avó.
De facto a avó, dorida pelo muito trabalho que a filha ainda tão nova e já com três filhos levava, tentava incutir alguma responsabilidade naquela neta, dizendo-lhe que já era uma mulher, e que tinha que ajudar a mãe.
Lurdes insistiu:
— Já sou uma mulher, não sou, avó?
— Pois és, já és uma mulherzinha, és ! — confirmou a avó com um largo sorriso.
O sorriso largo que viu na avó deu-lhe a certeza de que tinha vencido aquela batalha. — Então está bem. Mas não sais de ao pé de mim! Vai lá dizer à tua mãe que vais comigo.
E Lurdes lá foi, escapando-lhe a alegria nos saltos, nos gritos, que nem as recomendações insistentes da mãe conseguiram esmorecer.
A avó desceu cuidadosamente as escadas com o balde à cabeça, seguida pela neta. Uma vez na rua, exigiu agarrar a mão da miúda. A rua era íngreme, em calçada romana, e a pressa não era nenhuma. A garota falava pelos cotovelos, de tudo e de nada. A avó divertia-se com as saídas de neta, mas o carrego que transportava, obrigava-a a manter o pescoço bem erguido, e alguma concentração. Ao fundo da rua viraram à direita, depois à esquerda, encaminhando-se para a ribeira do Regato, cujas águas serviam de força motriz à fábrica de malhas. O caminho não era longo, mas o piso era irregular. Algumas pedras da calçada estavam polidas pelo desgaste dos pés que as calcorreavam e pela erosão, como se carinhosamente afagadas por mãos desveladas. Outras, mais resistentes aos agentes erosivos, apresentavam-se aqui e ali mais bicudas e rugosas.
Lurdes não cabia em si de contente. E a avó ia pensando que, afinal, a companhia da neta amenizava o cumprimento de uma obrigação tão pouco agradável.
Nenhuma das duas conseguiu explicar, mais tarde, o que se passara.
Aconteceu muito rápido. Num ápice, Lurdes viu a avó caída por terra, e viu-se a gritar, como se não fosse ela, nem a voz lhe pertencesse. A avó gemia, apenas, baixinho, como se receasse acordar alguém. O balde de esmalte azul, rebolara pelo chão, a tampa rolava rua abaixo, a afastar-se daquela cena grotesca. A cara da avó, a roupa, as pernas os braços, estavam cobertos por um líquido castanho misturado com substâncias de consistência mole e esponjosa, de cheiro nauseabundo. De repente, vindas de vários cantos, juntaram-se algumas mulheres, solícitas e caridosas.
— A minha neta…levem-na a casa! Avisem a minha filha!
Lurdes sentiu-se agarrada. Alguém lhe pegou ao colo. Quando mais tarde tentou reconstituir o que se passara, foi incapaz de se lembrar de quem lhe pegou, quem a levou a casa, a reacção da mãe…
Decorrido algum tempo, entrou devagarinho no quarto da avó, às escuras depois da visita do médico que lhe tratara as escoriações, diagnosticara um braço partido, e recomendara repouso. Subiu para a cama, cobriu a cara da avó de beijos, que a rodeou com o braço são. Estendeu-se ao seu lado. Nenhuma das duas disse uma palavra. Foi aí que a mãe a foi encontrar mais tarde, agarrada à avó, a dormir. E foi aí que Lurdes acordou na manhã seguinte.

domingo, 24 de outubro de 2010

E ela sonhava...




Cresceu protegida pelo olhar super atento da mãe. Até à idade de entrar para a escola, não lidou com outros miúdos que não fossem os irmãos. A primeira infância passou-a ela com os familiares que viviam debaixo do mesmo tecto, entre as brincadeiras dos irmãos, o carinho da mãe, da avó materna, da tia-avó, e dos primos, tios e avós paternos, que constantemente se visitavam.
Os garotos da sua idade passavam a vida na rua, brincado uns com os outros, mergulhando os pés descalços na água que corria livremente pelos regos… A vida ao ar livre lia-se nas manchas que o sol lhes marcava na pele, nos cabelos crespos, revoltos, indomáveis, incompatibilizados com o pente, nas calças arregaçadas, maiores que a cintura que as transportava, ajustadas com baraços de sisal ou de algodão, ou tiras de farrapos cruzadas no peito, a fazerem de suspensórios… Crescia-lhes a liberdade nos olhos, nos gestos, nos risos…
Os seus domínios eram a rua e neles reinavam, desde o nascer ao pôr-do-sol. Era então que eles iam desaparecendo, um por um, sem deixar rasto, ao som de gritos que, como o vento, esquadrinhavam os escaninhos das vielas, e até eles chegavam. Gritos que eles reconheciam com poder, gritos que cada um identificava e reconhecia como sendo dirigidos a cada um, gritos que os reconduziam a casa, gritos carregados de ameaças, castigos, pobreza, sofrimento, suor…
E cada nome gritado tinha o condão de reduzir cada pequeno rei das ruas à plebeia condição de filho, neto, sobrinho, irmão…
Ela não tinha autorização para ficar na rua. Por vezes atravessava a praça em direcção à srª Elvira, com os dois tostões bem apertados na mão com que comprava uma romã, mais pelo fascínio daquela fruta misteriosa do que pelo prazer de a comer. E ficava ali a vê-los, desejosa de se juntar a eles, perdida no tempo… A cantiga da água a correr, e o desejo de nela mergulhar os pés, caminhando descalça pelos regos, era como a melodia encantatória das sereias a tentar Ulisses e os seus companheiros…Quando por fim a procuravam, já ela estava descalça, tentando a aproximação ao grupo. E, sem palavras, apontava para os meninos. A resposta era invariavelmente a mesma “ os meninos andam descalços porque não têm sapatos, os meninos andam na rua porque não têm dono”…
E ela sonhava que um dia, também não teria dono…

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Uma menina de garra


A sua menina nasceu no dia de Nossa Senhora de Lurdes. Recebeu por isso, o nome da sua padroeira. Ainda tentou escolher para ela outro nome mais de acordo com os tempos modernos…Porém, as vozes escandalizadas da sogra, da mãe, da tia, levaram-na a submeter-se à tradição…
“Assim devia ser, se não queria fazer cair sobre a cabeça da menina, a vingança de Nossa Senhora…”
Os argumentos de que Nossa Senhora não era vingativa, acabou por os guardar bem no fundo de si…e se atraísse para a sua menina alguma espécie de má sorte? Sempre que, ao longo da vida ela seguisse um determinado caminho, ficaria sempre a dúvida…se optasse por aqueloutro, seria mais bem sucedida? Queria ser moderna, cortar com velhas superstições, implementar novas formas de pensar, de enfrentar o quotidiano…mas esse era um fardo demasiado pesado que não queria nem tinha arcaboiço para carregar toda a vida...Era jovem, e conquistara já para si o direito de enfrentar a vida de cabeça descoberta, na verdadeira acepção da palavra, de deixar o xaile de lado, como usavam todas as raparigas do povo e da sua geração… a pouco e pouco, como dirigente feminina do movimento operário católico do núcleo da sua aldeia, conseguiria que quase todas as jovens largassem o lenço e o xaile…
Mas, no que tocava àquele ser tão indefeso, que saíra de dentro de si, e que ela amava tanto, o pensamento de que poderia empenhar-lhe o futuro, só por ter escolhido para ela o nome errado, era insuportável. Foi melhor claudicar e submeter-se à tradição...Além do mais, Lurdes parecia ser já uma menina cheia de garra…Nascera rapidamente, sem grandes demoras…Enquanto o marido se apressava a chamar a parteira, elas as duas, mãe e filha, resolveram o assunto. A senhora Palmira, que ajudava a nascer todas as crianças daquela terra, só tivera o trabalho de cortar o cordão da criança, que já a esperava cá fora…
É certo que ela transportava os seus genes… Não era dada a pieguices e o que tinha que ser, assim seria. Tanta gente neste mundo, e toda a nascer da mesma maneira. Por isso, quando as dores se lhe ferraram nas cruzes, seriam quase duas da madrugada, ela levantou-se, atiçou o lume no fogão de lenha que ainda se não tinha extinguido, aqueceu o ferro e engomou os panos bordados pelas suas próprias mãos. Colocou-os nas floreiras, encostou-se e esperou. Quando entendeu que o parto estava próximo, acordou o seu homem, e mandou-o buscar a parteira. Ferrou os dentes numa fralda, que não se podia dar ao luxo de gritar, não fosse acordar o pequeno mais velho, o qual, com dois anos feitos no mês anterior, dormia no berço, nessa altura colocado no recanto do quarto mais afastado da cama do casal.
A sua menina ia ser uma mulher de garra, como já era um bebé de garra… Iria ter uma vida muito melhor do que a sua, sim…Ela tudo faria para que isso fosse possível…




sábado, 16 de outubro de 2010

E de novo



E de novo a armadilha dos abraços.
E de novo o enredo das delícias.
O rouco da garganta, os pés descalços
a pele alucinada de carícias.
As preces, os segredos, as risadas
no altar esplendoroso das ofertas.
De novo beijo a beijo as madrugadas
de novo seio a seio as descobertas.
Alcandorada no teu corpo imenso
teço um colar de gritos e silêncios
a ecoar no som dos precipícios.
E tudo o que me dás eu te devolvo.
E fazemos de novo, sempre novo
o amor total dos deuses e dos bichos.

Rosa Lobato de Faria

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

O cheiro da chuva




Acordo com a chuva a cair pelos beirados ruidosos, e os teus passos que, pelo soalho, se movem cautelosos. É puramente retórica a pergunta que te faço, velada ainda pelas nebulosas brumas de Morfeu. Chove, sim! Reconheço-a ruidosa e imparável, sobrepondo-se a qualquer outro som. É domingo. Aperto o edredão à volta do meu corpo e volto-me para o outro lado. Vou dormir mais um pouco, embalada pelo trepidar da chuva no aconchego da cama…
Começa a instalar-se uma dorzinha sub-reptícia bem lá no fundo… Agora é já impossível ignorá-la. Num gesto brusco, afasto a roupa e salto da cama.
Chego à janela, e os meus olhos seguem os volteios caprichosos e inusitados das gotas de água em acrobacias atrevidas pela vidraça fria. A luz, a alegria, o mar, a praia, as caminhadas, o calor, o aconchego, ficam para além da cortina prisioneira e ininterrupta, que me cerceia a liberdade... É com uma sensação de dor física e mental, de abandono, que recebo a chuva...É um sentimento que não consigo evitar, que me acompanha desde criança…
A garota franzina luta para atravessar a avenida desguarnecida de casas, ladeada de árvores e por duas ribeiras que, correndo do alto da serra, lançam as suas águas com estrepitoso fragor, saltando por cima das rochas que lhes barram o caminho. A garota vai a caminho da escola, que fica na encosta da aldeia. Tem que atravessar a povoação, a avenida, e, depois de longa caminhada, deixar para trás as casas e começar, finalmente, a subir a encosta, onde, lá no alto, se vislumbra a escola. Chove desapiedadamente. Ela traz uns botins pretos de borracha, uma gabardina de plástico e um guarda-chuva azuis. A avenida é o local mais temido para galgar, desabrigado, onde o vento sem quartel assobia assustadoramente. A água e o vento parecem ter encontrado na cachopita frágil, motivo de entretenimento. O vento rouba- lhe o guarda-chuva, e brinca com ele a seu bel-prazer, deixando-a completamente desprotegida, com o seu coraçãozinho assustado batendo descompassadamente. A chuva escorre pela gabardina de plástico, procurando-lhe fragilidades. Entra pelas costuras, penetra pelo colarinho, encontra o pescoço da menina, e as gotas geladas desenham-lhe caminhos na pele, entranham-se-lhe nos ossos. Junto aos joelhos, também as gotas de água caem pela orla da gabardina, invadindo o interior dos seus botins de borracha, deixando-lhe os pés ensopados. Os cabelos colam-se-lhe ao rosto, tapam-lhe a visão, e as lágrimas misturam-se com a chuva. Finalmente consegue agarrar o guarda-chuva, torto e imprestável. Aperta-o bem, com as suas mãozitas pequenas e geladas. A saca com os livros, já encharcada, marca-lhe de vergões vermelhos as mãos, com o esforço para a não largar. O temor de ter que mostrar a lousa ilegível acicata-lhe o mal-estar. Sente-se pequenina e abandonada. A lembrança da mãe provoca-lhe um acesso de choro quase incontrolável.
Num gesto decidido, afasto aquelas memórias.
Não! Nunca fui capaz de apreciar a chuva. E as chuvas das trovoadas acendem-me medos secretos e inconfessáveis…
Aprecio o cheiro a terra molhada, quando os agricultores abrem os sulcos na terra grávida, que, receptiva e apaixonada, se deixa penetrar pela água, numa união sagrada. Aprecio o cheiro a terra molhada, quando começa a transpirar e o vapor se evola dela, vestígio da passagem da chuva e da sua partida, mesmo que temporária, e o sol beija e fecunda a terra.
Mas a chuva que cai em cordas, fria e ininterruptamente, melando as árvores e as flores do meu quintal, encharcando a terra até à exaustão, gela-me a alma, pesa-me no coração.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Dor


Apercebo-me de que as feridas ainda sangram quando a rispidez e a impaciência são moeda de troca para as naturais procupações de uma mãe. Passeio-me então nos versos de há quase uma década. E esta adolescência intemporal e desencaixada, ao invés de partir, vai enterrando as suas raízes e é uma pedrada de sangue sem esperança nas minhas ilusões.


Meu menino,
Meu amor...
Quem veio roubar
A luz que brilhava
No fundo do teu olhar?
Quem veio roubar
A confiança cega
Com que teus passos
Corriam
Para os meus braços?
Quem veio roubar
O caminho
Que te conduzia até mim?

Os passos inquietos
Que teus medos nocturnos
Conduziam ao meu leito,
Ainda ecoam em mim...

A melopeia da cantiga
Que te entregava
Ao sono tranquilo,
«Vai-te coca, vai-te coca,
Pelas telhas do telhado,
Deixa dormir o menino
O soninho descansado…»,
Ainda ecoa em mim...

Olha,
Tenho o meu colo cheio
Do vazio que nele deixaste...
Tenho a saudade a crescer
Dos dias em que me ouvias...
Tenho o peso das palavras
Que te digo,
E não ouves...
Tenho a indiferença
Dos olhares
Que me olhas...
Tenho a arrogância
Dos sorrisos
Que me devolves...
Tenho a cortina
Dos silêncios
Que nos envolvem
Qual nevoeiro denso
Que sobre a praia se abate...

Bato à porta do teu coração,
Mas está fechado...
E as tuas palavras
São duras
E impacientes...
E queimam
Minha alma
Como espadas de gelo...
Mas o meu amor por ti,
Não diminuiu...
É um amor magoado,
É um amor dorido,
É um amor expectante...

Um dia encontrarás o caminho
Que conduzirá teus passos
De novo até mim...

Eu sei...
Agora precisas de voar,
Experimentar
A força das tuas asas,
E planar
Em direcção a outros horizontes...

Mas tenho medo...
Tenho medo
Que ainda não estejas preparado,
Tenho medo
Que alguma das mágoas
Que te fazem crescer,
Te façam perder de ti...

Ouve,
Eu não vou a lugar nenhum.
Espero-te,
Para te abraçar,
Quando o momento chegar...
Tu serás sempre
O meu menino...
Eu serei sempre
A tua mãe.

POR ONDE ANDA

Por onde anda
O teu coração
Que era para mim?

Por onde anda
O sorriso que jorrava
Dos teus lábios,
Que era para mim?

Por onde anda
O brilho que dançava
Nos teus olhos negros,
Que era para mim?

Por onde andam
As palavras fartas e imparáveis
Que eram para mim?

Por onde andam
Os teus carinhos fáceis
Que eram para mim?

Por onde anda
A ternura
Com que estendias
Os teus braços infantis?

Não reencontro
O teu sorriso
No sorriso trocista,
Que é para mim.

Não reconheço
A raiva que chispa
No teu olhar
Para mim


Não reconheço
As tuas palavras agrestes
Lacónicas irónicas
Para mim

Não reconheço
O azedume fácil
Para mim...

Não reconheço
Os teus braços caídos
Para mim.

Em que parte do percurso
Me largaste
Que eu não percebi?

Que foi que te fez colocar
A raiva
A indiferença
O azedume
A arrogância
No lugar da ternura,
Da meiguice
Da doçura,
Da solicitude,
Do amor?
Por onde anda o teu coração,
Que também era meu?

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

História com final feliz




O começo de mais um ano lectivo. Na primeira aula, fito, um por um, os rostos dos meus meninos do ano passado. Mais espigadotes, sobretudo as raparigas, mas nem todos necessariamente mais maduros. Ao fazer a chamada pela pauta, dou conta da correcção de um hiato que existiu durante todo o ano lectivo passado. E a história do Zé ocorre à minha memória. Este foi o texto que, no ano passado escrevi, e que agora lhe dedico.

No início de cada ano lectivo fico sempre na expectativa, relativamente aos novos alunos que me serão entregues. Este ano não foi excepção, tanto mais que iria pegar em turmas do 5º ano, uma vez que os meus meninos do ano passado e que recebi também no quinto ano, estão agora no sétimo, feitos uns homenzinhos e umas senhoras, em plena adolescência uns, outros a entrar nela…
É extremamente gratificante e um motivo de satisfação pessoal, quando passo nos corredores da escola e sou saudada calorosamente por quase todos eles, dado que alguns são menos dados a manifestações exteriores. Mas, mesmo assim, saúdam-me, mais timidamente, como é compreensível.
A adaptação destes meninos é quase sempre dolorosa…São muitas mudanças para assimilar de uma assentada… espaço novo, enorme, para quem estava restringido a pouco mais de quatro salas, obrigação de mudar de salas consoante a disciplina, ter de consultar um horário, disciplinas diversas, vários professores, cada um com as suas particularidades, passar apressadamente os registos do quadro, antes que eles sejam apagados, funcionários novos, passar cartão para entrar na escola, passar cartão para sair, fila para ir ao bar, fila para o refeitório, matulões a passarem à frente na fila, a pregarem rasteiras nos corredores, ter que engolir a raiva em seco, senão… ter que comer tudo o que está no prato, quer se goste ou não, “quem não gosta come menos ou vai comer a casa”, sob risco de ficar no refeitório indefinidamente até o prato estar limpo…
Para todas estas situações fiquei mais sensibilizada quando os meus próprios filhos passaram por lá…Vi o que até ali me passara ao lado…Vi as coisas pelos olhos deles, auscultei-lhes as dores como mãe…
Mas voltando aos meus novos meninos…
Nos primeiros dias olhei-os nos olhos, consciente de que a empatia é muito importante para poder prosseguir esta missão…falei com eles sempre sorrindo, quis saber coisas deles…
Procurei cumprir aquilo a que me proponho sempre: fixar-lhes rapidamente os nomes, o que, dado a memória não estar a ficar mais célere, de ano para ano é mais difícil…
Nestas primeiras abordagens fui-me apercebendo não só das fragilidades de alguns deles, como também das idiossincrasias que necessitam de ser contornadas. Este ano, os meninos são mais infantis, não cumprem regras, dispersam-se facilmente, não ouvem o que lhes é pedido, interrompem a aula com perguntas a questões que acabaram de ser explicadas, falam todos ao mesmo tempo, não aguardam a sua vez para falar… Sai-se de uma aula como se se tivesse acabado de correr uma maratona…Mas não podemos ficar indefinidamente a insistir nas regras… é preciso avançar com o desenvolvimento das competências específicas de cada disciplina…
Há dias o Zé não estava na aula. Quando perguntei por ele, disseram-me que estava maldisposto, e tinha ido beber um chá.
Mais tarde a directora de turma falou comigo: miúdo muito sensível, com dificuldades em adaptar-se…Já tinha passado na psicóloga, que conversara com ele.
Na aula seguinte, o Zé já estava bem. Óptimo!
Passados dias, a directora de turma, no intervalo, mesmo antes da minha aula, chamou-me de parte: o Zé chorava que nem uma Madalena, lágrimas gordas e sentidas…a aula seguinte era comigo…
Quando cheguei ao fundo das escadas, lá estava o Zé, chorando, “por causa dos nervos,” como, com a voz entrecortada, explicou.
— Ó Zé, eu percebo que estejas nervoso, mas olha que não há motivo para isso! Vá, vamos lá! — e, rodeando-lhe os ombros, cometi uma infracção, conduzindo-o pelas escadas que são vedadas aos alunos.
— Vamos por aqui para ser mais depressa, mas olha que os meninos não podem passar por aqui! Bom, mas como estás comigo, e para não deixarmos os teus colegas à espera, vamos lá.
O Zé subiu comigo e, decorridos uns momentos na aula, parecia que nunca se tinha passado nada.
Entretanto fui sabendo de várias situações que se repetiram com outros professores, e noutras aulas. Passado quase um mês de aulas, “o nosso Zé”, como dizia a directora de turma, continuava a sofrer dos nervos de inadaptação. A mãe veio buscá-lo algumas vezes sem ter acabado o período de aulas, a psicóloga conversou várias vezes com ele, a directora de turma a mesma coisa. Voltou a repetir-se a cena com o Zé ao fundo das escadas à minha espera. Os olhitos dele, inundados pelas lágrimas, lembravam os de um cachorrito que pede mimos ao dono E, mais uma vez, fui reincidente na infracção ao Regulamento Interno, para bem do Zé.
Por vezes apercebia-me das conversas durante os intervalos entre o garoto e a directora de turma. Um dia vi a mãe do Zé largá-lo à porta da escola, e arrancar sem olhar para trás—coitada da senhora! — enquanto o corpito franzino do Zé, sacudido por soluços e rosto lavado em pranto, se arrastava penosamente para dentro dos portões.
Nos dias em que o Zé conseguia ser mais forte do que os nervos, eu dava-lhe os parabéns. Já todos sabíamos que o Zé gostava da escola, dos funcionários, dos colegas, dos professores, mas os nervos dele é que não queriam saber disso para nada.
Um dia a directora de turma, num desses dias em que resolvera acarinhar ainda mais o miúdo, e tirando partido do facto de a disciplina por ela leccionada, Religião e Moral, ser perfeitamente propícia a uma descontracção de que as disciplinas curriculares não beneficiam, andava a passear com ele pelo átrio da escola, tentando que o Zé esquecesse os nervos e arrancar-lhe algumas gargalhadas, ou, pelo menos, alguns sorrisos. A colega, que é uma pessoa extraordinariamente bem-disposta, de personalidade histriónica, fazia uso dos seus dons performativos. Ao passarem por uma sala do rés-do-chão onde se leccionava uma disciplina de EVT, cujas janelas estavam abertas, de que se havia de lembrar a professora? Apercebeu-se quem eram as colegas que davam aulas na sala e pensou que elas não lhe levariam a mal, uma vez que era por uma boa causa. Disse para o rapaz:
— Ó Zé, vamo-nos esconder e vamos pregar um susto a esta malta.
Agacharam-se, encostadinhos à janela, e, a um sinal da DT levantaram-se ao mesmo tempo, e gritaram para dentro da sala:
— Huuuuuuuuuuu!
Lá de dentro, vem um grande rebuliço, e, descomandados, os alunos vêm à janela. A directora de turma, ri, juntamente com o Zé, e o resto dos alunos. As professoras assomam à janela e repreendem, bem-dispostas, a colega:
— Estas maluquices só tuas!
Mas algo se passa. O Zé, de olhos bem abertos, como se refém de uma descoberta inexplicável, murmura, preso de um encantamento que comoveu até às lágrimas a sua professora:
— Os meus colegas! …
— São os teus colegas da escola primária, Zé? — confirma a professora. O Zé não tem palavras. Diz que sim com a cabeça, enquanto um sorriso tímido lhe aflora o rosto.
É então que a professora toma uma decisão. Entra pela sala adentro, dá duas palavras às professoras de EVT, e deixa o Zé na sala, na companhia dos seus colegas e sob a supervisão das professoras da turma, que logo distribuem uma tarefa ao miúdo. Dirige-se ao gabinete do Director. Dali vai fazer um telefonema à mãe do Zé, e, passando por cima do parecer da psicóloga, que opinava que não se deviam fazer as vontades ao garoto, que ele iria ultrapassar e a sua autonomia sairia reforçada ( o que certamente acabaria por acontecer, não sabemos a que custo), põe-se a mexer os cordelinhos para que o Zé possa juntar-se aos seus colegas.
Hoje tive uma boa notícia. O Zé já não faz parte dos meninos da minha turma. Mas anda por aí, e veio engrossar o grupo daqueles que, não sendo já meus alunos, me saúdam com entusiasmo.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Os sótãos da minha vida





Sempre tive uma predilecção muito especial por sótãos ou águas-furtadas desde pequena.
Atrai-me a descoberta do inesperado, das velharias guardadas, como se na decisão de guardar essas velharias se pretendesse guardar o tempo que a sua contemplação evoca, mantendo a secreta esperança de que algum dia elas possam ser insufladas de vida, e descoberta para elas nova utilidade.
É essa esperança que as mantém a salvo de algum dia poderem ser atiradas para o lixo.
O sótão da casa da minha avó paterna era diferente do da minha outra avó. Era um sótão cujo soalho era de tábua corrida, luminoso, onde se podia ficar em pé e cheirava a limpo e a maçãs.
Da única vez em que lá subi, fiquei deslumbrada...Era um sítio óptimo para se estar, para brincar, para ler...Mas eu só ia a casa da minha avó de visita, aos domingos à tarde, no domingo de Páscoa, que era obrigatório, sob pena de termos de enfrentar a sua fúria. Nos outros dias, vi-a com frequência, mas na minha casa, onde ela ia dar dois dedos de conversa, os quais culminavam invariavelmente com uma merenda em que a bebida de eleição era o chá.
Nunca tive com ela a mesma confiança que tinha com a minha avó materna. Era uma relação quase cerimoniosa. Por isso, quando ela nos oferecia alguma gulodice, devíamos sempre recusar educadamente.
— Não, obrigada!
E só depois de ela insistir, é que nos atrevíamos a estender a mão para o que ela nos apresentava.
Daí que nunca me tivesse sido permitido explorar devidamente aquele sótão, de onde se vislumbrava, através de um pequeno postigo rasgado no telhado, um belo pedaço de céu azul.
O sótão da casa da minha avó materna, ou desvão, como ela lhe chamava, era um lugar sombrio, cheio de teias de aranha, pó e inutilidades...E a minha avó ficava possessa, quando descobria que nós andávamos por lá...
Na altura não percebia esta rezinguice dela...Só mais tarde é que entendi que o receio dela era que enfiássemos algum pé pelo sobrado velho e carcomido, e viéssemos a estatelar- nos, sem vida, no chão de granito da cozinha...
É que a casa onde vivíamos era de facto muito velha...O meu avô comprara-a com o dinheiro que amealhara no Brasil, e tinha intenções de a recuperar, colocando-lhe uma placa e um terraço...Mas a morte arrebatara-o, sem que tivesse levado a cabo esses seus intentos, e também sem nunca ter feito as pazes com a família que aqui ficara em Portugal. Quem sabe se, algum dia, algum dos seus descendentes chama a si a tarefa de procurar nessas terras longínquas brasileiras, os seus restos mortais?
Outro sótão que fez as minhas delícias em pequena, foi o da casa da praça, para onde nos mudámos quando deixámos a casa da minha avó materna, onde os meus pais viveram desde que casaram, até ao momento em que decidiram, finalmente, cortar o cordão umbilical e irem viver com a família para uma casa com condições mais adequadas à de alguém que aspira subir na escala social. Era um sótão enorme, amplo, com as telhas à mostra, com enormes caibros de castanho, que suportavam a estrutura de toda a casa. A luz natural entrava por telhas de vidro. Tinha uma parte central com um pé direito que permitia que se caminhasse nele à vontade, com o soalho em tábua corrida, e onde havia uma pequena divisão com o tecto forrado a madeira, que servia de quarto de criada. Aí dormiu a Laurinda, cachopa que ajudava a minha mãe nas tarefas domésticas, e era também, amiúde, nossa companheira (minha e do meu irmão) nas brincadeiras, cujo palco privilegiado era aquele sótão que tão bem se prestava ao desenvolvimento das nossas imaginosas aventuras. De facto, os espaços esconsos do sótão eram, nalguns recantos, tão estreitos e apertados, que o acesso a eles só a nós, crianças, era possível, e muitas vezes a poder de rastejarmos por entre os pequenos intervalos. Se levantávamos a cabeça, arriscávamo-nos a juntar mais uns galos à colecção...
Às vezes vinha juntar-se às nossas brincadeiras o Zé Pereira, colega e companheiro de carteira do meu irmão. Era um rapazinho educado, o filho mais novo do sapateiro, órfão de mãe. Um dia fui encontrá-los enfiados num dos tais recantos a que só nós, pelo tamanho dos nossos corpos, tínhamos acesso. Rastejei até junto deles. Estavam tão absortos, que nem deram pela minha chegada. Quando me viram, mostraram-se desagradados, o que aguçou o meu apetite. Queria ver o que eles estavam a ver, e que lhes causava aqueles risinhos. Estavam debruçados, lado a lado, espreitando para baixo. Pude então constatar tratar-se de uma abertura no tecto do sótão do andar de baixo, que se destinava a deixar passar a luz que penetrava pelas telhas de vidro do nosso sótão. Era o quarto da criada da senhora que morava por baixo de nós, e que era nora do nosso senhorio. Reconheci aquele espaço por já lá ter estado, pois muitas vezes eu descia até ao andar de baixo, atraída por aquela senhora citadina e bem cheirosa, que era em tudo diferente das mulheres que eu conhecia: usava cabelos compridos com uma fita larga na cabeça, “leggings”, camisolões coloridos de malha grossa que ela própria tricotava, e que lhe chegavam quase aos joelhos, “maquillage”, e falava à lisboeta. Aí eu era sempre bem recebida, tanto pela senhora, que não tinha filhos e me achava graça, como pela sua criada.
Naquele momento, em baixo não estava ninguém, mas não sei se aqueles dois malandrecos não teriam assistido a alguma cena que não deviam, dado os risinhos palermas e os olhares cúmplices que eles trocavam.
Também o tecto nos oferecia refúgios que eram inexpugnáveis à estatura dos adultos. Os espaços que havia entre as traves mestras de enormes dimensões e o telhado, permitiam que aí nos esticássemos ao comprido, sem sermos vistos por quem olhasse de baixo para o tecto. Éramos como macacos, subindo pelos pilares e pendurando-nos das traves de cabeça para baixo. Numa das traves havia o meu pai ajeitado uma corda amarrada a um pneu velho, que nos servia de baloiço. Outras vezes estendíamo-nos no chão, e, através das fisgas do soalho, víamos a nossa mãe que, na cozinha, se ocupava das tarefas domésticas. Chamávamo-la, e ela, com uma entoação de voz surpresa, fingia não saber quem lhe falava e de onde lhe falávamos, o que nos deixava realmente convencidos de que tínhamos conseguido pregar-lhe uma partida. Esse foi para mim um tempo fantástico! Era a altura em que eu era a companheira de brincadeiras do meu irmão mais velho. Eu esperava ansiosa que ele chegasse da escola para nos entregarmos aos nossos folguedos. Nos dias chuvosos, ficávamos ali, a ouvir a chuva martelar no telhado, a vê-la escorrer pelas telhas de vidro, e a brincar às escondidas...Eu era perfeitamente feliz, pois a ansiedade provocada pela escola, período que veio a revelar-se tão traumatizante para mim, ainda não tinha vindo perturbar a despreocupação da infância. Nessa altura o meu irmão mais novo era ainda muito pequeno para participar neste tipo de brincadeiras. Sofria, desde pequeno, de enxaquecas que o deixavam muito prostrado, e, por isso, quase não saía debaixo das saias da minha mãe. Era muito conversador, e entretinha-se muito com ela. Quando o meu irmão mais velho saiu de casa para ir estudar, ficando interno num colégio e vindo a casa apenas nas férias, sofri com esta separação. Foi então que me voltei para o meu irmão mais novo, por quem me sentia responsável, levando a peito o meu papel de irmã mais velha. Nesta altura o meu instinto maternal desenvolveu-se fortemente, e eu imaginava então que ele era o meu filhinho...
Outros sótãos entraram na minha vida. Quando nos mudámos para a cidade para podermos estudar, a casa então alugada pelos meus pais era um casarão que dispunha de um sótão que era um outro andar. Quando entrámos nessa casa para a explorarmos pela primeira vez, corri para as escadas ao fundo do corredor, e, depois de as galgar, encantei-me com o sótão. Escolhi logo um dos quartos para mim. Eram quatro quartos, naturalmente esconsos, dois de cada lado do corredor, forrados com ripas de madeira pintadas de azul-claro, e paredes brancas. Cada um possuía uma janela de alçapão, para a iluminação e arejamento. O meu irmão mais velho também escolheu um dos quartos para ele, mas cedo voltou para baixo, partilhando o espaço com o meu irmão mais novo. Sentia-se mais tranquilo com companhia, pois não lidava bem com o escuro e, no andar de baixo, além da tranquilidade que a proximidade do mano lhe proporcionava, podia ainda usufruir da localização próxima do quarto dos meus pais. Ao fundo do corredor do sótão, havia uma porta feita à nossa medida (era o que gostávamos de pensar, uma vez que nos chegava à altura dos ombros), encimada por uma enorme clarabóia. Essa portinhola dava acesso aos arrumos, com as telhas à mostra, e onde só podíamos movimentar- nos de cócoras. Em cada quarto havia também uma porta de tamanho reduzido, que comunicava com os mesmos arrumos. Penso que foi a existência destas portas que desencorajou o meu irmão de manter o seu quarto no sótão.
Sentados por baixo dessa clarabóia, num dia mágico, embalados pela música que as gotas de chuva produziam ao embater nos vidros, com a porta de acesso aos arrumos aberta e aproveitando uma pausa nas arrumações decorrentes das mudanças, tivemos, eu e o meu irmão, uma conversa cheia de cumplicidades, em que confessámos um ao outro a perturbação de um corpo em mudança, que a natureza conduzia, a passo rápido, para a adolescência. Não me lembro de um momento tão íntimo com ele como aquele. Provavelmente, essa conversa caiu na escuridão do seu esquecimento. Mas eu lembro-me, tantos anos passados, e sinto uma ternura enorme por esse momento de partilha.
Na casa onde eu vivo com os meus filhos e o meu marido, e que é a nossa casa, no verdadeiro sentido do termo, há, como não podia deixar de ser, um sótão.
É um sótão simpaticíssimo, com muita luz, todo forrado a madeira. Duas pequenas portas laterais conduzem à “desarrumação”, nome adequado aos trastes que por lá se vão acumulando, preservando-os da nossa vista. Três paredes deste espaço amplo, que nós elegemos para local de trabalho, são inteiramente forradas por grossas prateleiras de madeira, que abrigam aqueles que são os meus companheiros de sempre: os meus livros. Dos mais antigos aos mais recentes, amigos que eu não dispenso, que me têm acompanhado desde sempre, e sem os quais a minha vida seria, sem sombra de dúvida, muito solitária e insípida.

Um dia na praia





Todos os dias faço a mim própria a promessa de me levantar suficientemente cedo para poder aproveitara a praia, e poder usufruir plenamente os dias que me separam do início do trabalho. Não consigo. Invariavelmente chego à praia quando os outros regressam, munida de guarda-sol para poder proteger-me do sol nos momentos em que ele é proibido para quem respeita as regras e tem cuidado com a sua saúde. Todos os dias me arrependo de não ter levado comigo o pára-vento, pois, mais do que me proteger do sol, eu sinto necessidade, isso sim, de me proteger do vento. Acabo por ficar na praia uns minutos. É que, a partir das dezasseis horas, levanta-se um vento, que se vai tornando bastante desconfortável…E, embora a praia fique desagradável, varrida por aquele vento incomodativo, não posso deixar de me interrogar por que motivo aquela gente resiste estoicamente, como cumprido uma promessa qualquer que lhes trará decerto algumas benesses. Eu não tenho esse espírito de sacrifício…Sou demasiado comodista.
O dia de hoje não foi excepção. Quando me levantei havia nevoeiro. Sou incapaz de sair de casa com a cama por fazer e a louça do pequeno-almoço por lavar. Tratei dessas coisas com todas as calmas e vi o sol a espreitar. Quase instantaneamente, o céu ficou azul, como se a neblina que impedia o azul de se mostrar, tivesse sido varrida por mãos amáveis.
Quando comecei a descer a rua, devidamente equipada, apercebi-me imediatamente que o trabalho de limpeza do céu tinha ficado incompleto. No horizonte, o mar tinha suspensa uma larga faixa negra, de um cinzento bem carregado. Os meus olhos deslizaram pelo horizonte, à esquerda, em direcção ao paredão. Por lá, algumas nuvens ligeiras, fofas e dispersas. Do lado direito, na serra, a cinza era ainda mais densa e impenetrável. Ao fundo da rua, em frente, a faixa era mais larga, mesmo no sítio onde costumo montar guarda. Mais um dia de vento e de frio, pensei. Mais uma vez, claro, sem pára-vento, fiel aos impulsos que se descobrem tardiamente inadequados. Coloquei o guarda-sol deitado, de maneira a proteger-me do vento. As abas começaram a bater ruidosa e freneticamente, acrescentado inúteis aragens às já excessivas. Deito-me e fico a olhar o céu.
Há qualquer coisa de majestoso no ritual do dispersar das nuvens.
Primeiro o aglomerado denso começa a espojar-se, a espreguiçar-se languidamente. Depois expande-se num ritmo mais acentuado. O branco vai-se apresentando esfarrapado, marmoreado. O azul avança, sumindo disciplinadamente o branco, como se alguém estivesse a retirar pedaços de um saboroso doce e fosse prolongando o prazer da degustação nesse demorado cerimonial. Daí a pouco o azul já só está raiado de branco. E, ante os nossos olhos, o que resta da nuvem esvai-se, num prolongado suspiro.
Agora apercebo-me de uma bruxa escabelada, que alguém puxa pelas pernas, enquanto ela se esforça por se agarrar com a boca do outro lado. Mas vai-se esfarrapando, desfazendo, e, dentro em pouco, está dissolvida no azul, perdida a sua identidade, o seu eu, a sua existência.
Também aquele descomunal colosso, que nos olha, de costas, altivo, imponente e sobranceiro, não escapa ao apetite lento, mas voraz, do azul.
O dragão longo e serpenteante, lembrando os espectáculos chineses, esvai-se sem ter tempo de nos deliciar com o seu espectáculo. Mal se apresentou, deu dois passos de dança, e foi engolido pelo azul.
E, o camaleão que estende a sua língua comprida para caçar a presa, fica desfeito em ilhas de azul…
Finalmente, o azul venceu. E o sol, luminoso e quente, brilhou, sem obstáculos.
Só então me apercebo que também o vento se retirou. E que estou a desfrutar de um belíssimo dia de praia.
Cracias à la vida!




sábado, 11 de setembro de 2010

O dr. Lacerda





O meu bisavô paterno era barbeiro de profissão. Na loja térrea de sua casa recebia ele os clientes e os amigos, que muitas vezes ali vinham dar dois dedos de conversa. Então aos sábados não tinha mãos a medir, cortando cabelos e barbas, fazendo jus à expressão “tem mais freguesia que um barbeiro ao sábado”. Por vezes também arrancava dentes e fazia sangrias, quando o chamavam.
Contrariando o hábito que grassava na grande parte dos homens da sua terra, ele não partira para o Brasil…Gostava da sua profissão… não dava para ser rico, mas também não tinha essas ambições…Havia coisas mais importantes que o dinheiro…Amava a sua terra, a mulher, os filhos, e era incapaz de os trocar pelas perspectiva de riqueza. Ele bem via o que acontecia àqueles que partiam em busca de riqueza…Muitos voltavam doentes, outros nem sequer voltavam…Uns perdiam as famílias, as mulheres deitavam- se com outros…os filhos olhavam para eles como se de uns desconhecidos se tratasse…Ná… isso não era para ele… Claro que ficava contente quando algum dos seus amigos voltava do Brasil, e partilhava sucessos… mas nunca desejou estar no lugar deles…Além do mais, pensar que haveria um oceano a separá-lo da sua terra, dava-lhe voltas ao estômago. A água era importante, sim, mas para fazer a barba aos fregueses, para a comida, para fertilizar a terra, e para a ouvir cantando pelos regos da aldeia abaixo…Do que ele mais gostava era de manhã cedo, antes de abrir a barbearia, ir regar as terras, plantar umas couves, as batatas, o milho … e, à noite, depois de um dia de trabalho sem grandes sobressaltos, deitar-se de bem com a sua consciência e orgulhoso da família que Deus lhe dera…Não era homem para viver longe da mulher, dos filhos, dos amigos, das terras…Queria-os ali a todos, bem próximos…
Era uma pessoa sensata, leal e amiga do seu amigo. E exigia igual tratamento daqueles que com ele privavam, não admitindo traições ou faltas de carácter.
Houve em tempos na aldeia um indivíduo de algumas posses, que era muito miudinho e picuinhas, gostando de usar termos que a maioria dos aldeãos, com muito pouca instrução, desconhecia. Essa personagem, por vezes queria esmiuçar de tal maneira as instruções que dava àqueles que chamava para lhe fazerem determinados trabalhos, que se tornava frequentemente complicado perceber o que ele pretendia com esses termos. Exigia, por exemplo, que no jardim lhe “efectuassem um orifício com 30 centímetros de profundidade, 15 centímetros de diâmetro equidistantes 12 centímetros dos outros orifícios”… Ainda por cima o homem não despegava de cima dos trabalhadores, que ficavam sem pachorra para o ouvir, e a olhar para ele de olhos arrelampados, sem perceberem patavina do que ele queria…Daí que tivesse ganho o epíteto de dr. Lacerda.
Por dr. Lacerda passou a ser apelidado todo o gabarolas, aquele que usasse palavras imperceptíveis para a maior parte dos seus iguais, ou até que não lograsse explicar-se por excesso de palavreado. E a expressão “parece o dr. Lacerda”, passou a ser recorrente por aquelas bandas. Numa terra em que todos se conheciam, os mais novos se tuteavam e com os mais velhos se usava o “ti”, ser tratado por “Dr.” era, de facto, irónico e discriminatório. O mesmo não sucedia com o tratamento de “senhor” a que almejavam os que regressavam ricos do Brasil. Aqui não se tratava de discriminar, mas de reconhecer o mérito dos que haviam partido pobres, e regressavam ricos. Começou assim a assistir-se a um natural fenómeno de ascensão social traduzido na substituição dos “tios “ pelos “senhores, por parte da camada mais jovem da população.

Um dia, um amigo de infância com o qual o meu bisavô muito havia brincado, regressou do Brasil, depois de bastantes anos de trabalho duro, e, ao que constava, com alguns cabedais e planos para abrir um negócio de vinhos e petiscos.
Passou pela barbearia do meu bisavô, que o recebeu calorosamente, algo emocionado, feliz pelo sucesso do amigo. Depois das primeiras euforias, dos abraços e partilhas, entregou-se o brasileiro nas mãos conhecedoras do seu amigo, para o serviço completo de barba e cabelo.
O barbeiro lá foi cortando o cabelo, com calma e cuidado, enquanto cada um expunha ao outro os seus percursos de vida.
Depois do corte do cabelo, passou o meu avô à barba. Com toda a parcimónia, ensaboou o rosto do antigo companheiro de brincadeiras, e foram recordando as traquinices que a vida ao ar livre e sem vigilâncias lhes proporcionara, deleitando-se com o gosto dessa liberdade sem limites de uma infância feliz e despreocupada: o roubo da fruta ainda verde só pelo prazer da transgressão, as tardes inteiras passadas a nadar e a caçar bordalos e rãs na ribeira, o jogo aos feijões e aos botões, o despique com os piões, as explorações com os rodízios conduzidos com a gancheta pelas ruas da aldeia, as corridas com os carros feitos com as pranchas de madeira e as carretas dos desperdícios da fábrica… as armadilhas aos pássaros com os costilos, a pontaria com as fisgas que, às vezes, em vez de acertarem nos pássaros ou na fruta lhes fugia para os vidros da janelas de alguém com quem precisavam de acertar umas contas…
Ficaram um breve instante calados, mergulhados em tão saborosas recordações. Com todo o vagar, as mãos do meu bisavô continuavam levando a cabo a sua tarefa…
Foi o Arnaldo quem rompeu aquela torrente de lembranças…
— Sabes, José, agora sou rico, felizmente a vida correu-me bem…Estudei, sou uma pessoa importante… Toda a gente me trata por “senhor,” e eu mereço… por isso, não fica bem tratares-me por “tu”. Não é um bom exemplo… Não me leves a mal, mas… a partir de agora, queria que me tratasses também por “senhor”.
Por instantes a lâmina que escanhoava a barba do senhor Arnaldo ficou no ar…
O brasileiro tinha metade do rosto ensaboado. A outra metade havia já sido afagada pela lâmina.
— Tens razão!—respondeu o meu avô. — Tens carradas de razão. Mas, como sabes, a minha casa é modesta…
A acompanhar as palavras, os gestos decididos do meu bisavô: tirou a toalha à volta do pescoço do ex-companheiro de brincadeiras, sacudi-a e dobrou-a.
— Tenho muita pena. Eu aqui não faço a barba a senhores finos. Aqui, só mesmo a homens da minha condição.
E, ao mesmo tempo que empurrava o freguês dali para fora, com meio rosto ensaboado, metade da barba feita, outra meia por fazer, rematou:
— Vai fazer a barba a quem trate de senhores finos!
Arnaldo, atónito e sem reacção, deixou-se conduzir como um autómato, não acreditando no que estava a acontecer. Quando se viu na rua, expulso de casa de José, é que se deu conta de que talvez tivesse perdido um amigo para sempre. Lentamente, levou a mão ao bolso, tirou o lenço e limpou a cara.
Nunca mais se falaram. Por vezes, na barbearia vinha à baila a história daquele que, para o meu bisavô, deixou de ser o seu velho amigo Arnaldo, e passou a ser o Dr. Lacerda.




quarta-feira, 8 de setembro de 2010

A estrela





Já lá ia mais de um mês que o Daniel perscrutava incessantemente a abóbada celeste e, até agora, nada...
E uma angústia crescente roía-lhe o peito, plantando nele, a cada noite que passava sem resultados, a certeza de que fora abandonado.
Regressava à cama, desiludido, sentindo-se cada vez mais só, traído e enganado e com o peso daquela dor enorme a devorá-lo por dentro, que parecia esmagá-lo e era maior, muito maior que o seu corpito frágil e franzino para um rapaz de onze anos.
Puxava então os cobertores, cobrindo a cabeça, para que a mãe não pudesse sequer desconfiar...Não queria afligi-la ainda mais, pois ele bem lia todas as manhãs, nos seus olhos vermelhos e inchados, a tristeza que lhe morava na alma, muito embora ela tentasse disfarçar...
Entregava-se, então, à sua dor, deixando que os soluços tomassem conta do seu corpo, lhe sacudissem os ombros… até ser vencido pelo cansaço e adormecer…

.........
Até que um dia, a viu. Ela brilhava intensamente, mais que todas as outras, e correspondia ao piscar dos seus olhos. E o Daniel, louco de felicidade, pôde, enfim, reconhecer que, afinal, não fora enganado.
— Oh! Pai! Porque demoraste tanto?
E a resposta a esta pergunta, Daniel ouviu-a no seu coração. Soube, então, que tudo tem o seu tempo, e que o tempo que o pai demorara a responder ao seu apelo, fora o que tivera de ser.
Então o Daniel começou a desfiar um rosário de confidências...os amigos, a escola, a sua tristeza e a da mãe, o sorriso da Sónia, que lhe fazia correr o sangue mais depressa nas veias, e lhe provocava a vontade de a trazer com ele para casa...
Ouviu, dentro de si, a expressão do desejo do pai, fazendo-lhe saber que não queria que estivesse triste, porque, tal como lhe havia prometido pouco antes da sua partida, ele estaria sempre ali, velando por ele e pela mãe, ouvindo-o e aconselhando-o. Bastava que procurasse no céu a estrelinha mais brilhante e especial, e acreditasse com toda a força, que ele não lhe iria faltar...Mas teria que prometer não contar à mãe destas suas conversas...
— Mas...porquê, pai, porquê?! — quis saber Daniel.
E, mais uma vez, foi de dentro de si que veio a resposta: a mãe estava ainda muito perturbada com a sua morte e isto iria perturbá-la mais ainda...Além disso, nunca se sabe como podem os adultos reagir a uma situação destas...
— Oh! Pai! Tenho tantas saudades tuas! Sabes? Dos teus abraços... das tuas brincadeiras...
— Pois, meu filho, fecha os olhos, e pensa nessas situações em que eu te abraçava, e vais ver que eu continuo a abraçar-te... — esta foi a resposta que sentiu dentro de si.
E o Daniel fechou os olhos com tanta força, que ficaram reduzidos a dois traços no seu rosto.
Viu então o pai a correr com ele de bicicleta, os dois lado a lado, como antes, ouviu as suas gargalhadas, e um calor começou a invadi-lo, ao sentir-se fortemente estreitado pelos braços do pai...o seu cheiro característico inundou-lhe as narinas, o bafo morno da sua respiração acariciou-lhe o pescoço e os seus cabelos roçaram-lhe a cara...
Uma paz incomensurável foi subindo por ele acima, semelhante à que sentia quando mergulhava na água quente da piscina Municipal da sua cidade.
Não! Ele não estava sozinho!
Do fundo do seu sofrimento, a mãe do Daniel começou a asstir a uma transformação do seu filho....mais alegre, começava a dar sinais muito claros de estar a recuperar da morte do pai, se é que alguma vez se recupera...Mas o que é certo é que já o ouvia a cantarolar, e os colegas da escola já passavam novamente lá por casa, quando, à tarde regressavam das aulas...
A sua carga de mãe sofrida, começava a ficar mais leve...Ao ver a disposição do seu filho, também ela se sentia mais apaziguada, com o coração menos oprimido...Começava a acreditar que, afinal, era possível a vida retomar o seu trilho para voltar a girar, lenta, mas implacável, nos seus carris...

domingo, 29 de agosto de 2010

"Os filhos do Albatroz"


A leitura deste livro foi para mim uma grande revelação. Tocou-me a forma poética e comovente como a autora esmiúça os sentimentos, os ecos das vivências da infância e adolescência — algumas bem devastadoras — que vão ficando na nossa alma, mesmo depois de adultos, mesmo depois de nos julgarmos imunes à dor, eles chegam e manietam-nos, sempre que percepcionamos como idênticas situações vividas anteriormente. Então tudo emerge, e somos pequeninos, e instinto, e sangue e carne.

domingo, 22 de agosto de 2010

Despertar


Despi meus desejos,
Meus sonhos, meu canto...
Larguei meu abrigo,
Meu espaço...
E parti contigo,
Envolta no teu abraço.

Adormeci embalada
Pelo teu olhar,
Pelas tuas quimeras,
Pelos teus sonhos,
Teus desejos...

Quando acordei,
No teu olhar me mirei
E não me reconheci
Também já não estavas ali...
Era teu o caminho que percorri,
Tua a vida que vivi.

A Bola de Cristal
Na qual víamos o mundo
Quebrou-se nas nossas mãos
Em desespero profundo

Por negras sombras cercada
No silêncio da escuridão
Vi-me cheia de nada
Largada da tua mão.

Caminho tropeçando
Na noite dura
Frágil e temerosa
Tacteando a estrada perdida
À luz da lua....

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Entrega


Emergem do marulhar das águas submersas
Palavras encantatórias
Acordam melodias adormecidas
No mais recôndito da tua alma
Vibram acordes na pele súbita e abstracta
Enleiam-se sôfregos arrepios
No teu corpo desperto
Instalam-se nas narinas ávidas
Da tua respiração mole e doce
Afloram tuas pálpebras palpitantes
Cerradas pelo desejo circular
Percorrem teus mamilos erectos
Descem pela tua boca entreaberta
Gelatinosas algas esquivas
Explodem silêncios de júbilo
Num segundo.

sábado, 14 de agosto de 2010

No fundo das cinzas



No Fundo das cinzas
Do meu ser
repousam
minhas desfeitas quimeras
Lanço-as ao vento
Para não mais as ver
E de novo construo
Meu viver...

Para não mais as ver
Lanço-as ao vento...
Das cinzas renasço
Armada para outras esperas...
De novas asas
Apetrechada,
Novos voos tento,
Imbuída
De fé e de esperança
Que me dão novo fulgor,
Novo alento...

E por mais mares
Encapelados
Por mais tormentas
No caminho,
Há sempre a calmaria
À minha espera,
Há sempre
À minha espera,
O meu ninho...

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

"Renascer"





Nem sabia por que cedera ao impulso de estender a roupa. Tinha decidido nem sequer a lavar. Deixá-la lá, no cesto da roupa suja, para ele sentir a sua ausência. Mas não fora capaz. Arrumara tudo, como era seu hábito. Queria deixar tudo impecavelmente limpo, como sempre fizera durante aqueles quinze anos. Apesar das angústias, dos desamores, das desatenções… das depressões.
Ia-se embora. Partir. Abandoná-lo. Deixar para trás aquela vida de morta-viva. Ia-se embora enquanto era tempo, enquanto ainda tinha forças para trabalhar. Ali sufocava e estiolava. Não aguentava os dias sempre iguais, monótonos, sem uma palavra de apreço. Ele já não a via. Em tempos ela ainda se esmerara em jogos de sedução: uma blusa nova, um novo penteado, um perfume diferente…mas nada o fazia sair daquele mutismo…olhava para ela, distraído, e não a via. Cansara-se.
Para já, ia alojar-se na casa da prima que morava nos arredores da aldeia, junto à paragem das camionetas. No dia seguinte, de madrugada, seguiria para Lisboa, onde Daniela lhe garantira alojamento e apoio.
Perdida a esperança de engravidar, o que talvez trouxesse algum vigor àquela relação moribunda, o melhor era partir. Levava pouca coisa. Colocara alguma roupa num saco que guardara na casa da prima. O que lhe interessavam as coisas? Aliás, em casa sempre tivera tudo. Ele comprava tudo o que era necessário, até algumas extravagâncias… Mas fora-se esquecendo de prover o alimento da sua alma. Ele confundia o sexo com a sua necessidade de ternura, carinho, conversa, estímulo, sorrisos…E ela precisava de tão pouco…bastava que olhasse para ela, que a visse, e reparasse na blusa nova, no penteado diferente, que lhe dissesse que era bonita, que a amava… que se chegasse junto dela carinhosamente, sem a ideia preconcebida de a arrastar para a cama.
O que ela fazia em casa, qualquer uma faria…Que contratasse uma empregada…No fundo, não era o que ela era, empregada para todo o serviço?
Quando chegasse, no Sábado, correria a casa toda à sua procura e não a encontraria…ficaria preocupado? Aborrecido? Raivoso? Ciumento?
Ora, que lhe interessava? Ficasse lá como quisesse…
Uma nuvem de tristeza ensombrou-lhe os olhos. Suspirou fundo. Tinha pena! Claro que tinha pena! Dela, dele, da vida deles, de…
Ora! Não podia deixar-se amolecer. A decisão estava tomada. E em Lisboa, iria trabalhar como auxiliar no infantário que a Daniela dirigia. Era o que ela sempre desejara! Em solteira, trabalhara com crianças! Mas ele quisera que ela ficasse em casa! Olha agora! Ficar em casa a contar os segundos, as horas, as decepções mensais nas cuecas manchadas… Que homem antiquado! Na altura, os argumentos dele convenceram-na, e pressentiu até algum despeito nas suas amigas...Ele ganhava mais do que o suficiente, não queria que se cansasse a cuidar dos filhos dos outros, mas que se preparasse para cuidar dos próprios filhos…Enfim! Ilusões!
De repente, lobrigou um vulto na janela da cozinha. Sobressaltou-se. Era ele. O coração bateu-lhe no peito.
O receio de que se apercebesse do que se preparava para fazer, roubou-lhe as molas das mãos, e a toalha caiu no chão. Ficou manchada. Era preciso lavá-la de novo. Mas…lavá-la, para quê? Isso já nada interessava, agora que a sua decisão estava tomada.
Ia fingir que não se dera conta da sua chegada.
******
Rosa saiu do banho de imersão perfumado. Nem queria acreditar no que estava a acontecer! Durante anos, sonhara com um momento como aquele!
Tinha que telefonar às primas e torná-las cúmplices do seu segredo. Ele não podia saber o que ela estivera prestes a fazer!
Convidara-a para irem jantar fora, e dançar!... Dissera-lhe que estava linda, e olhara-lhe os olhos com promessas, e…Ai meu Deus! Sentia-se uma adolescente! Que parvoíce! Ao fim de quinze anos!
Já pedira à irmã que a viesse maquilhar, e fora desencantar no baú aquele vestido de cerimónia que nunca chegara a usar! E ainda lhe servia! Ia pôr-se esplendorosa! Cheirava a paixão no ar! Não é que sentira um arrepio pela espinha, quando ele lhe dissera que estava linda? Ela sabia bem que não era bonita, mas a beleza está nos olhos de quem a vê e ele olhou, e viu-a bela aos seus olhos. O seu homem!
Neste momento não pôde conter-se e o dique aprisionado em seu olhar rompeu em águas mansas, salgadas e libertadoras. As águas correram e limparam as réstias de resistência que ainda moravam lá bem no fundo de si mesma.
Decidiu entregar-se e calar de vez o grito de alma emudecido durante anos na flor dos seus lábios. Olhou para o espelho e gostou do que viu. Sorriu para o rosto que o espelho lhe devolvia. Aquele sorriso acendeu-lhe primaveras no corpo. Viu as horas. Tinha que se despachar. Bateu as palmas. Sentia-se rebentar de excitação.
Nos escombros do seu coração começou a despontar uma tenra e viçosa esperança. Iria regá-la diariamente com ternura, cuidar para que nenhum vento lhe vergasse o caule tenro ainda menino.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Carta a meu pai



Vale da Ribeira, 2 de Dezembro de 2007

Meu pai:

Nem imagina quantas folhas de papel rasguei, antes de começar esta carta. Virei a minha imaginação do avesso, até, finalmente me decidir por “meu pai”.Embora o senhor tenha tentado apagar da sua vida esse episódio em que participou para me trazer ao mundo, é aquilo que o senhor é, quer queira quer não.
Nem imagina o quanto, em pequena, sonhava com o momento em que o senhor surgiria à minha frente a chamar-me “filha”, e me abraçaria com o amor de pai que eu nunca experimentei, porque o senhor mo negou.
Mais tarde, já rapariga, sonhava ainda que o senhor havia de aparecer, estender-me os braços, e que eu iria a correr aninhar-me neles, como qualquer filho faria...
As raparigas da minha idade sonhavam com um belo rapaz que, tal como num conto de fadas, apareceria do nada, casaria com elas e levá-las-ia para muito longe, onde seriam felizes para sempre. Eu também sonhava...mas o sonho mais importante dos meus dias e noites, era com o senhor.
Um dia havia de aparecer...
E então, eu esperava que, nessa altura, o senhor me resgataria do domínio daquele homem que me humilhava e maltratava, e que a minha mãe arranjou, para que fizesse o papel de pai que competia ao senhor, e que o senhor rejeitou.
Coitada da minha mãe! Como pagou caro o erro de ter confiado nas suas promessas!... Para evitar que eu fosse humilhada na escola quando me perguntassem o nome do meu pai, ou quando tivesse que preencher algum documento e, no lugar do nome do pai fosse obrigada a escrever aquela palavra terrível que me marcaria e inferiorizaria, comprou, para a sua vida e dos filhos, um bêbado do qual era obrigada a fugir pela noite dentro, ao frio, à chuva, arrastando consigo os filhos que ele perseguia munido de uma faca, numa fúria assassina. Aprendi a odiar esse homem, ao assistir às cenas de pancadaria a que ele sujeitava a minha mãe, e aos maus-tratos que nos infligia a todos. Quando descobri que ele não era meu pai, consegui perdoar-me, e prosseguir a minha vida sem o peso terrível que era saber que se odeia o próprio pai. Essa consolação não tiveram os meus irmãos, que, apesar de filhos deste bruto, nem por isso escapavam a esta sanha animalesca.
Mas nessas alturas, em que o álcool e a raiva o viravam contra nós, eu rezava, pedia a Deus que me trouxesse o meu pai, que ele me salvaria das mãos deste louco e lhe pediria contas pela maneira cruel e desumana como me tratava... Se não fora o meu avô a acolher-me em sua casa a partir dos meus catorze anos, não sei o que me poderia ter acontecido...
Mas as vozes do Céu permaneceram mudas...Dizem que vozes de burros não chegam aos céus...Talvez eu fosse burra, mas por acreditar que este milagre pudesse ser possível...Sim, porque de burra para as coisas da escola, segundo diziam os professores, eu não tinha nada...A professora primária bem disse à minha mãe que era uma pena eu não poder continuar a estudar...Mas eu era a mais velha...E o meu padrasto sempre me discriminou relativamente aos meus irmãos...Como pensar em estudar? Era preciso que eu ficasse a cuidar da casa, dos meus irmãos, fizesse a comida, enquanto a minha mãe ia trabalhar para nós e para o bêbado do marido que ficava agarrado à cama semanas inteiras, a curar a bebedeira...
Como teria sido diferente se o senhor tivesse cumprido a lei da ética, já que não pôde fugir à da Natureza, trazendo-me ao mundo...
Imagino o quanto deve ter odiado a minha mãe, por se ter recusado a abortar como o senhor queria!...Sei que a tratou com desprezo, como a um ser inferior, ao arranjar testemunhas que, a troco de uns tostões, empenharam a honra jurando falso, ao inventarem-lhe outros homens com os quais se teria deitado, saindo o senhor livre do compromisso que não teve a dignidade de assumir...
Não lhe bastava tê-la lançado nas bocas do mundo por ser mãe solteira, “crime” do qual o senhor foi cúmplice, tratou ainda de lhe denegrir a reputação, remetendo-a ao mais baixo da escala moral a que uma mulher pode chegar...
Estou a par de tudo...Mas a minha mãe conseguiu superar isso tudo...Se lhe perdoou ou não, não sei. Sei que não esqueceu. Nem eu esqueci, nem esqueço... Aquilo que verdadeiramente me fez falta, como lhe contei, já o senhor me não pode dar.
Por diversas vezes as minhas tias me instigaram a que o procurasse, que havia de se lhe derreter o coração quando eu lhe aparecesse à frente, e o senhor visse na minha cara espelhado o seu rosto...Mas eu nunca quis...Nunca o procurei com receio de que pudesse pensar que estava a exigir aquilo a que tinha direito. A minha mãe diz que eu sou orgulhosa como o senhor.
E não me teria mexido, nem teria sequer falado aos meus filhos no senhor, se o seu irmão, tinha eu quase dezoito anos, me não tivesse procurado, tomado o pulso, perguntando-me se eu precisava de alguma coisa, dizendo que o senhor pensava em mim e queria aproximar-se. Houve quem me alertasse para a possibilidade de os senhores quererem saber se eu estaria na disponibilidade de mover uma acção de investigação de paternidade, a qual só seria possível até aos meus dezoito anos. Não acreditei, e até fiquei zangada. Eu defendi o senhor, veja bem! Que ingenuidade!
E foi nessa altura, quando o seu irmão me procurou, que eu, no fundo de mim lhe perdoei...
Penso que o senhor terá ficado bem tranquilo, ao aperceber-se de que eu, pobre de mim, não seria nenhuma ameaça, nem para a serenidade do seu casamento, nem para o património dos seus filhos, nem para a sua tranquilidade de espírito. Eu sempre disse, muito embora tenha sido chamada de parva por causa disso por muito boa gente, que nunca exigiria nada do senhor. Mas que, se porventura me quisesse presentear, também não recusaria. Houve também quem me viesse dizer que uma determinada terra do seu património, me estaria destinada...Não acreditei...Pelo menos, eu não quis acreditar, com receio de que isso fosse demasiado bom para ser verdade e, ao acreditar, pudesse trazer azar a essa hipótese. Não que me importasse o valor da terra, mas porque esse gesto seria a prova de que o seu coração teria reconhecido a filha que as suas palavras nunca aceitaram. E o meu coração ficou também mais quentinho e aconcheguei num cantinho, o senhor, meu pai…
Mas o tempo foi passando, e o senhor nunca mais fez nenhum gesto para se aproximar, como tinha prometido...E eu respeitei o desejo dessa maneira expresso, de estrangular à nascença esta relação, que nem chegou a nascer. Ficaria sossegada, aqui, no meu cantinho, e não teria a ousadia de sequer pensar em lhe escrever. Mas os filhos fazem-nos repensar as nossas intenções e corrigir atitudes, ou traçar-lhes uma outra trajectória.
O meu filho mais novo, que tem agora onze anos, não me larga, sempre a dizer-me que quer conhecer o avô. A culpa é minha, porque sempre lhes falei no senhor, desde miúdos, com todo o romantismo que a minha alma albergava. O mais velho, nunca manifestou curiosidade em conhecê-lo. Mas este mais novo é tão sensível!...
Os meus filhos são o melhor que eu tenho! Embora com dificuldades financeiras, sempre com os trocos contados, a procurar esticar o dinheiro até ao fim do mês, procuro dar-lhes o que está ao meu alcance, e sempre que posso, fazer-lhes um miminho. Não lhes falta amor, atenção e carinho, e procuro dar-lhes tanto mais, quanto a mim me faltou.
Um dia, depois de muito ter ouvido este meu filho, acabei por ceder à proposta dele e fomos procurá-lo a sua casa, mas o senhor, se estava em casa, refugiou-se bem lá dentro, evitando o confronto.
O meu filho mais novo diz-me muitas vezes que quer ir para a Universidade. Que lhe posso dizer? Cortar-lhe já essa possibilidade? Vou-lhe dizendo que estude, estude muito, porque, se for bom estudante, logo se há-de ver. Claro que gostava que ele fosse doutor, se tivesse cabeça … Mas sei que não temos possibilidades económicas para isso. Mas, se ele o merecer, e continuar com essa ideia enraizada, eu tudo farei para o conseguir. Continuo a ser orgulhosa, mas agora sou mãe. Há outros sentimentos que se sobrepõem ao orgulho.
Entretanto, o meu filho continua a insistir em querer conhecer o avô.
Não sei como o serenar. Que lhe hei-de dizer? Que o avô não quer saber da sua existência?


Cumprimenta-o a sua filha,
Leonor


P:S: Pedi à minha patroa que me corrigisse o português desta carta. Ela é minha amiga, desde os meus dezasseis anos, e eu confio nela. Ajudou-me a encontrar as palavras para dizer aquilo que eu queria dizer, mas não sabia como. Mas as ideias, são minhas, e só minhas.

domingo, 8 de agosto de 2010

Uma longa viagem







Finalmente chegou. Era preciso galgar a pé o quilómetro que o separava de casa. O alvoroço coexistia com uma sensação de calma, como se a simples decisão de mudar de vida lhe eliminasse os anos de stress acumulado. Mesmo que tivesse decidido não pensar na experiência que vivenciara, não podia apagá-la como se fosse o traço de um lápis que se elimina com o simples passar da borracha. Ainda não decidira se contaria à Rosa. Era difícil de explicar e de acreditar. Poderia até pensar que tinha enlouquecido... O melhor era calar-se, por enquanto. Depois se veria. No final da curva, a sua casa apareceu. Uma casa pequena, de pedra, enquadrada por hortenses, as flores preferidas de Rosa. À frente da casa estendia-se a horta bem cuidada. Pela primeira vez olhou as portadas com olhos de ver. Precisavam de uma pintura. Já não iria adiar mais essa tarefa. Teria muito tempo para isso. Abriu o portão. Entrou em casa sem fazer barulho, antegozando o ar estupefacto da mulher. Deu a volta à casa, sem a encontrar. Da janela da cozinha viu-a nas traseiras, pendurando a roupa que a máquina ainda quente acabara de lavar. No rosto desgastado da mulher liam-se os últimos quinze anos de depressões provocadas por tentativas frustradas de engravidar. A medicação tinha-lhe deformado o corpo elegante que o vestido de noiva cingira no dia do casamento. José sabia-lhe o olhar sempre ensombrado por uma nuvem de tristeza, mesmo quando se ria. E ele não tivera paciência para entender. Muitas vezes a deixara sozinha entregue àquela dor silenciosa e fora afogar a dor que era comum, no café do bairro. Uma dor que cada um procurava curar de costas um para o outro, perdidos em gestos e olhares desencontrados. Pela primeira vez reconhecia o egoísmo que a atitude de se afastar, deixando-a sozinha a lidar com a ausência de risos de criança, podia comportar. Sempre apaziguara a sua consciência dizendo de si para si “que eram coisas de mulheres”… José sentiu uma ternura infinita pela sua companheira. Aproximou-se e resolveu chamar por ela, para a não assustar.
— Rosa! Cheguei!
O rosto de Rosa voltou-se para ele. Triste, com sempre.
— Já chegaste?! Mas tinhas dito que só vinhas no sábado! Aconteceu alguma coisa?
Enquanto dizia estas palavras, levantou a cabeça, para trocar com o marido os dois beijos de boas-vindas habituais.
José puxou-a para si, olhou-a nos olhos até à alma. Disse então:
— Sabes que estás linda?
— Eu?! — O tom de incredulidade foi acompanhado por uma passagem das mãos pelos cabelos, tentando repor no seu lugar uma repa teimosa que lhe descaía sobre o rosto, e um sorriso tímido. — O que tens? Nunca me viste? — perguntou, rindo-se. Desde há muitos anos que se desabituara destes mimos do marido, e sentia-se até um pouco desconfortável com esta atenção.
— Olha, hoje vamos jantar fora e depois vamos dançar. Que dizes?
— Que não deves estar bom da cabeça!
José pegou-lhe nas mãos. Depois insistiu.
— Rosa, olha para mim. Para os meus olhos. De agora em diante vou falar contigo sempre de olhos nos olhos. Não estou a brincar. Estou a fazer-te um convite sério. Põe um vestido bonito e vamos sair.
Um sorriso lindo iluminou o rosto de Rosa. Ainda contrapôs:
— Mas…Tu não gostas de dançar…
— Mas gosta a minha querida mulher…
Rosa quebrou as suas resistências, abraçou o marido e, como uma criança, bateu as palmas:
— Ai que bom! Ai que bom! Mas… vestido!... Não tenho vestido! …
— Claro que tens! Aquele que comprámos para a festa da Daniela…
O sorriso de Rosa morreu-lhe nos lábios. José percebeu o esmorecimento da mulher.
Aquele vestido nunca o chegara a usar…Compraram-no com um grande entusiasmo para o casamento da Daniela, a sobrinha que casara em Lisboa numa família muito “bem”. Mas ele embebedara-se na véspera, e o vestido ficou guardado no baú durante anos, sem nunca ter chegado a oportunidade de ser usado…
— Desculpa, Rosa! Eu vou mudar! Aliás, já estou mudado!
Rosa afastou com as mãos esses pensamentos intrusivos e, voltando ao ar gaiato, agora reconquistado, decidiu:
— Vou buscá-lo! Tenho que o pôr a arejar antes de o passar a ferro. E ver se me serve!
Os olhos de José seguiram a mulher até ela desaparecer no interior da casa. Olhou então para dentro de si, convocando os estranhos acontecimentos daquele dia, daquele exacto momento, daquela fracção de segundo, em que José tomou uma decisão. A sua vida cheia de rotinas entediantes, a sua vida cinzenta, de trabalho duro, de um bom salário cheio de horas extraordinárias sem dias para o gastar…essa vida sem sentido, ia acabar…
Aos dias seguiram-se os meses, os anos, sem que nada de verdadeiramente importante o fizesse sentir que a vida valia a pena ser vivida…Os quinze anos de casado não lhe trouxeram os filhos por que ansiara…Dentro de pouco tempo estaria velho, a coluna desfeita pelas longas horas de condução, e a vida por viver…
Naquele dia, naquele exacto momento, naquela fracção de segundo em que adormecera ao volante do camião de longo curso que durante anos fora a sua casa, tomou a suprema decisão de comandar a sua vida.
Naquele dia, naquele exacto momento, naquela fracção de segundo em que fechara os olhos, embatera violentamente contra outro camião, sendo projectado pelo ar e esmagado contra o asfalto, vira-se a si próprio espectador da sua desgraça: arrastado num turbilhão de cenas passadas, a esbracejar e a escorregar, sugado por um sorvedouro gigante em forma de cone de névoa… e vira o sorriso triste da mulher…e desejara que tudo tivesse sido diferente… Subitamente, como num filme em rewind,, encontrou-se de novo sentado ao volante do seu Mercedes-Benz e o camião, o tal contra o qual embatera, passou calmamente no outro lado da estrada, saudando-o com o sinal de luzes.
Não teve dúvidas…Não fora um sonho…Fora um sinal. A Morte batera-lhe à porta, tragara-o e cuspira-o, como alguém que, por engano, prova algo que detesta. Uma nova oportunidade. Não sabe porquê. Mas não a ia desperdiçar, nem perder muito tempo a esmiuçar as razões…Chegara a altura de tomar o seu destino nas suas próprias mãos, e encetar uma nova viagem. A partir daquele momento, uma nova vida o esperava…
Estacionou o camião na estrada, junto a uma paragem de camionetas de carreira. Ligou para a empresa, a explicar onde tinha deixado o camião, e a pedir que não contassem mais com ele. Fez sinal à camioneta que chegava e entrou. Sentiu um alívio enorme, como se o camião que acabara de abandonar na estrada, deixasse de lhe pesar nas costas. Sorriu ao imaginar o ar de surpresa da Rosa. Agora ia começar uma nova vida. Uma nova viagem. Uma longa viagem… Era pelo menos o que ele esperava…se não fosse para coser as pontas desalinhadas da sua vida, por que outro motivo ele tinha sido devolvido pela morte?
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Fora tão fácil fazê-la feliz! O ar maravilhado e incrédulo que lhe vira no rosto, quando se admirara ao espelho maquilhada pela irmã! A segurança com que ela caminhara nos saltos altos, como se nunca tivesse feito outra coisa…O vestido, o célebre vestido de trespasse, a que ela só precisara de mudar um botão, o jantar saboreado com vagar no restaurante com pista de dança, o brilho extasiado no seu olhar… A valsa que dançaram na praça, quando regressaram a casa, ternamente enlaçados, e que culminou com os aplausos dos vizinhos, que, longe de se zangarem por terem sido acordados, com eles festejaram o amor… A noite de louca paixão renascida que lhes incendiou os sentidos…
Já não se lembrava daquela maravilhosa sensação de apaziguamento, de terna felicidade…Na verdade, sentia-se leve, leve…como se o chão tivesse uns amortecedores, que lhe davam a sensação de caminhar nas nuvens…Deixara de sentir as dores nas costas, e a barriga pesada, embora ela continuasse lá, bem proeminente…
Deu um último retoque ao tabuleiro do pequeno-almoço, colocando uma rosa que colhera no jardim, ao lado da chávena da sua Rosa. Cuidadosamente, agarrou no tabuleiro e dirigiu-se ao quarto.

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